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Obra de Lupicínio Rodrigues antecipa onda da “sofrência”

Repro­dução: © Agên­cia Câmara de Notícias/Divulgação

Compositor gaúcho é autor dos clássicos Vingança e Esses Moços


Publicado em 16/09/2024 — 14:31 Por Gilberto Costa – Repórter da Agência Brasil* — Brasília

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Muito antes da atu­al onda de “sofrên­cia”, o can­cioneiro brasileiro era povoa­do por músi­cas de “dor de cotovelo”. Este era o nome que se dava à aflição sen­ti­men­tal do amor não cor­re­spon­di­do ou não bem ter­mi­na­do. A expressão teria origem na imagem de alguém tris­ton­ho, com os cotove­los apoia­dos na mesa ou no bal­cão de um bar lamen­tan­do a fal­ta de sorte do coração. Atire a primeira pedra quem nun­ca sofreu por amor e cur­tiu a fos­sa ouvin­do uma canção de dor de cotovelo.

Em um vas­to repertório de canções para sen­tir e sofr­er, desta­ca-se a obra do com­pos­i­tor, can­tor e cro­nista gaú­cho Lupicínio Rodrigues. Hoje, 16 de setem­bro, comem­o­ram-se os 110 anos de nasci­men­to de Lupe, como é trata­do em Por­to Ale­gre. Lupicínio Rodrigues foi um fenô­meno: o úni­co artista que não mora­va no Rio de Janeiro, nem em São Paulo, e fazia suces­so nacional des­de a déca­da de 1930.

Recen­te­mente, as histórias de Lupe gan­haram um novo livro, escrito pelo tam­bém com­pos­i­tor e pesquisador musi­cal Arthur de Faria. O nome do livro, que se orig­i­nou do doutora­do de Arthur de Faria em lit­er­atu­ra brasileira, é Lupicínio: Uma Biografia Musi­cal, pub­li­ca­do pela edi­to­ra Arquipéla­go.

A seguir os prin­ci­pais tre­chos da entre­vista do autor à Agên­cia Brasil:

Agên­cia Brasil – O seu livro con­ta que Lupicínio Rodrigues não sabia tocar nen­hum instru­men­to musi­cal. Mas, a despeito dis­so, além das letras, com­pun­ha melo­dias com algum grau de sofisti­cação. Como isso era pos­sív­el?

Arthur de Faria – Não dá para ter certeza, mas eu acho que ele par­tia do tex­to, ou ia fazen­do as duas coisas jun­tas, can­tarolan­do mes­mo na cabeça dele. O úni­co instru­men­to que o Lupicínio toca­va era a caix­in­ha de fós­foros. Ele com­pun­ha muito em bares, na rua, rara­mente em casa. Ia sem­pre encon­trar algum par­ceiro que tocasse algum instru­men­to har­môni­co [como vio­lão e piano]. Esse par­ceiro cri­a­va o acom­pan­hamen­to, tocan­do os acordes que seri­am os acordes daque­la músi­ca.
A grande maio­r­ia das músi­cas do Lupicínio é for­ma­da por melo­dias que pas­seiam muito do grave para o agu­do. São melo­dias de muitas notas e largas exten­sões. Há muitas canções dele que começam com um uni­ver­so de pou­cas notas, mas, na segun­da parte, mais dramáti­ca, há saltos melódi­cos gigan­tescos. Isso tudo é instin­to do Lupicínio.
Quan­do você faz uma per­gun­ta, a melo­dia da voz sobe. Então, se eu te per­gun­tar: “você sabe o que é ter um amor, meu sen­hor?”, a melo­dia sobe. O que define que isso é uma per­gun­ta, é a melo­dia da fala. Se eu estiv­er afir­man­do: como “ter lou­cu­ra por uma mul­her”, a melo­dia desce. A canção do Lupicínio sem­pre acer­ta nis­so.

Agên­cia Brasil – Mas como ele apren­deu a faz­er isso? Como des­per­tou o inter­esse pela canção?

Arthur de Faria – O Lupicínio nasce em 1914. A Por­to Ale­gre dos anos 1910 e 1920 era um cenário muito efer­ves­cente. Era um por­to impor­tante aqui do Sul. Era um pon­to de tra­je­to entre grandes com­pan­hias europeias que iam do Rio de Janeiro para Buenos Aires e Mon­te­v­idéu e par­avam em Por­to Ale­gre. Havia ópera, con­cer­to, teatro e teatro musi­ca­do. Tin­ha mui­ta pro­dução musi­cal em Por­to Ale­gre, val­sa, pol­ca, scot­tish, que já se chama­va xote, habanera, que logo ia se chamar van­era. Tin­ha uma onda de gru­pos com for­ma­to de jazz, que tocavam fox­trote, tocavam one-steptwo-stepcharleston, essas coisas.

Agên­cia Brasil – Por falar em Por­to Ale­gre, a cidade é a segun­da per­son­agem mais impor­tante do seu livro, depois de Lupicínio. Ain­da exis­tem lugares na cidade que ele con­heceu e fre­quen­tou?

Arthur de Faria – Muito poucos. Nen­hu­ma das casas notur­nas daque­la época existe ain­da hoje. O espíri­to boêmio, trans­pos­to para real­i­dade atu­al, per­siste mais forte­mente, no bair­ro da Cidade Baixa, que era o bair­ro cen­tral da boêmia.

Agên­cia Brasil – É comum aos poet­as e aos letris­tas cri­arem um per­son­agem, ou até per­son­agens no plur­al, para expres­sar sen­ti­men­tos e con­vicções que não nec­es­sari­a­mente sejam seus, o chama­do “eu líri­co”. No livro, você iden­ti­fi­ca, em difer­entes canções, situ­ações que foram pas­sagens da vida do Lupicínio, em espe­cial seus envolvi­men­tos amorosos. Ele com­pun­ha a par­tir do que tin­ha vivi­do de fato. Podemos diz­er que Lupicínio Rodrigues era um letrista sem o eu líri­co?

Arthur de Faria – Na ver­dade, ele fez jogo de cena. Lupicínio fala­va que tudo que com­pôs foram coisas que acon­te­ce­r­am com ele. Men­ti­ra! Havia nas músi­cas coisas que acon­te­ce­r­am com ele ou que ele ouviu de ami­gos, coisas que se pas­saram com ami­gos e con­heci­dos, e que ele pux­ou a história para ele. Mas essas pes­soas tin­ham um eu líri­co muito semel­hante ao dele. Era o mun­do da boemia por­to-ale­grense, um uni­ver­so pare­ci­do. As ale­grias e as patolo­gias sim­i­lares – eram muito machis­tas – e tin­ham uma con­vivên­cia que, para os padrões da época, era muitís­si­mo democráti­ca. Eram home­ns de qual­quer classe social, com for­mação difer­ente. Podi­am ser bran­cos ou pre­tos, het­ero ou gays, que não escon­di­am que eram gays.

Agên­cia Brasil – Mas o livro con­ta que músi­cas como “Ela disse-me assim” foram exper­iên­cias próprias…

Arthur de Faria – O Lupicínio tin­ha muito esse gozo do sofri­men­to amoroso. Ele ado­ra­va. Tem um depoi­men­to incrív­el, que está no livro, de um ami­go con­tan­do que esta­va cam­in­han­do com Lupicínio na rua e aí ele diz: “vou ali na casa da fulana”, que era uma das namoradas que ele tin­ha. Lupicínio demo­ra e o ami­go vai espi­ar pela janela. Ele vê Lupicínio de joel­hos na frente da namora­da, e ela com um revólver den­tro da boca dele. O ami­go con­ta que Lupicínio esta­va com uma expressão beat­i­fi­ca­da, e não de medo.

Agên­cia Brasil – No livro você tam­bém con­ta que Lupicínio Rodrigues con­heceu o com­pos­i­tor Noel Rosa e os can­tores Mário Reis e Fran­cis­co Alves em Por­to Ale­gre. Que importân­cia tiver­am ess­es nomes para o com­pos­i­tor gaú­cho?

Arthur de Faria – Lupicínio já admi­ra­va muito o Mário Reis. Ain­da garo­to, ele chegou a ser croon­er, can­tor de con­jun­tos, e era chama­do de Mário Reis, porque achavam que ele can­ta­va igual ao Mário Reis. Assim como João Gilber­to, Lupicínio tin­ha essa refer­ên­cia clara como can­tor.
Noel Rosa era então recon­heci­do como o maior com­pos­i­tor do Brasil, e o Lupicínio que­ria mais do que tudo ser com­pos­i­tor e era um grande fã do Noel – como seria qual­quer pes­soa que quisesse ser com­pos­i­tor. Há a história de que Noel, então com 22 anos, após ouvir algu­mas canções de Lupicínio, então com 17 anos, teria dito: “esse meni­no é muito bom.” Eu não pos­so provar que isso de fato acon­te­ceu.

Agên­cia Brasil – Uma coisa mais fácil de provar é a importân­cia que Fran­cis­co Alves teve para Lupicínio ser um nome nacional, não?

Arthur de Faria – Exata­mente. Algum tem­po depois da gravação com suces­so de Se Aca­so Você Chegasse, por Ciro Mon­teiro, em 1937], Lupicínio vai ao Rio de Janeiro, mostrar out­ras músi­cas dele pra algu­mas pes­soas. Ele mostra várias canções para o Fran­cis­co Alves, que diz para ele guardar tudo e prom­ete gravar, mas não gra­va.
Em 1945, o Orlan­do Sil­va, que era o segun­do can­tor mais impor­tante do Brasil, gra­va uma das músi­cas que o Lupicínio tin­ha mostra­do para Fran­cis­co Alves. Não sei se tomar uma bola­da nas costas do Orlan­do Sil­va, ou se porque perce­beu o cresci­men­to do bolero e do sam­ba-canção, Fran­cis­co começa final­mente a gravar as músi­cas que o Lupicínio tin­ha dado para ele. Aí é suces­so depois de suces­so.

Agên­cia Brasil – Falam­os de Se Aca­so Você Chegasse, que é uma músi­ca que lança o Ciro Mon­teiro e duas décadas depois leva Elza Soares ao suces­so. Que difer­enças têm essas ver­sões? Há out­ro caso na músi­ca brasileira de uma mes­ma músi­ca servir de lança­men­to para dois artis­tas tão dis­tantes, tão difer­entes?

Arthur de Faria – Não me ocorre nen­hu­ma out­ra músi­ca, nen­hum out­ro caso, ain­da mais com inter­va­lo de tem­po tão grande. A músi­ca brasileira esta­va em out­ro uni­ver­so. Elza fez um negó­cio que, na época, cau­sou polêmi­ca. Ela já era, sem saber, super­fem­i­nista. Ela não can­ta os ver­sos “de dia, me lava a roupa; de noite e me bei­ja a boca”. Cer­ta vez, Elza expli­cou: “eu lavei mui­ta roupa de madame e eu não vou can­tar um negó­cio desse.”
Ago­ra a out­ra boa dela é quan­do gra­va Vin­gança, em mea­d­os dos anos 1960. As pes­soas acharam que ela esta­va debochan­do da músi­ca. Em uma entre­vista, eu per­gun­tei para ela se esta­va debochan­do naque­la gravação. Ela respon­deu: “bicho, não dá para can­tar aqui­lo a sério, ? Claro que eu esta­va tiran­do uma onda desse dra­mal­hão.” Meu pal­pite é que o próprio Lupicínio tam­bém tira­va um pouco de onda.

*O títu­lo da matéria foi alter­ado às 14h54

Edição: Nádia Fran­co

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