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Peça, documentário e música homenageiam mortos da Vila Socó

Repro­dução: © Sander Newton/Coletivo 302

Vazamento em tubulação da Petrobras causou incêndio há 40 anos


Pub­li­ca­do em 24/02/2024 — 10:59 Por Elaine Patri­cia Cruz – Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo
Atu­al­iza­do em 24/02/2024 — 08:45

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“Não deve­mos esque­cer os nos­sos irmãos da Vila Socó, trans­for­ma­dos em cin­zas, lixo em pó. A tragé­dia da Vila Socó mostra como o tra­bal­hador é explo­rado, esma­ga­do sem nen­hum dó”.

Foi assim que, em 1984, o com­pos­i­tor Gilber­to Mendes (1922–2016) descreveu a peça que com­pôs para coro chama­da Vila Socó Meu Amor. A peça foi sua for­ma de hom­e­nagear as víti­mas do incên­dio ocor­ri­do na madru­ga­da dos dias 24 e 25 de fevereiro de 1984, em Cubatão, e que dev­as­tou a pop­u­lação que vivia no bair­ro.

Em depoi­men­to ao pianista, pro­fes­sor e ami­go José Eduar­do Mar­tins, pub­li­ca­do na edição de dezem­bro de 1991 da revista Estu­dos Avança­dos, da Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP), Gilber­to Mendes desta­cou ter escrito a músi­ca não só como uma hom­e­nagem, mas tam­bém como denún­cia. “O desca­so não tem fim”, escreveu o com­pos­i­tor na época.

“Com min­ha músi­ca, pre­ten­di ter feito algu­ma coisa in memo­ri­am dos mor­tos por aque­la ver­dadeira bom­ba de Hiroshi­ma que foi a explosão da Vila Socó. Por isso a lem­brança, no títu­lo, do [dire­tor francês] Alain Resnais, da imen­sa piedade pelo des­ti­no dos home­ns, que seu extra­ordinário filme [Hiroshi­ma meu amor] comu­ni­ca. Meu cole­ga Cel­so Del­neri diri­gia um coral fem­i­ni­no no Depar­ta­men­to de Músi­ca da Esco­la de Comu­ni­cações e Artes da USP e me havia pedi­do uma músi­ca. O hor­ror diante da ter­rív­el notí­cia deu-me o impul­so”, comen­tou Mendes.

Vila Socó Meu Amor não é a úni­ca expressão cul­tur­al que procu­ra man­ter viva a memória daque­le incên­dio que, ofi­cial­mente, viti­mou 93 pes­soas, mas pode ter real­mente mata­do 508. Out­ras man­i­fes­tações cul­tur­ais como o teatro e o cin­e­ma tam­bém têm bus­ca­do res­gatar essa memória.

Teatro

Esse é o caso, por exem­p­lo, da peça Vila Socó, do cole­ti­vo 302, que estreará ain­da neste ano. A peça é parte de uma trilo­gia indus­tri­al sobre a cidade de Cubatão, que teve iní­cio com uma peça sobre a Vila Parisi, pas­sou pela Vila Fab­ril e que se encer­ra com a Vila Socó. “Essa história rep­re­sen­ta a gente con­tar um pouco sobre nos­sos antepas­sa­dos, sobre nos­sa cidade e enten­der como cheg­amos nesse pon­to em que esta­mos hoje na cidade de Cubatão. Para nós, artis­tas, é uma maneira de se faz­er Justiça nes­sa cidade e ser­mos con­tem­porâ­neos de teatro”, expli­cou Matheus Lípari, 29 anos, per­former e ilu­mi­nador da peça.

Essa memória vem sendo rea­v­i­va­da há mais de um ano pelo cole­ti­vo por meio de pesquisas e depoi­men­tos de pes­soas que viver­am o incên­dio. E con­tará até mes­mo com uma exper­iên­cia pes­soal. Um dos atores e dire­tores do cole­ti­vo, Dou­glas Lima, 34 anos, por exem­p­lo, nasceu pouco tem­po depois do incên­dio e pas­sou sua infân­cia na Vila Socó. “Min­ha mãe e meu pai moravam na Vila São José (anti­ga Vila Socó) na época do incên­dio. São sobre­viventes”, con­tou ele à Agên­cia Brasil.

Cinema

Antes da peça, o cur­ta doc­u­men­tal Uma Tragé­dia Anun­ci­a­da, dirigi­do pelo pro­du­tor audio­vi­su­al Diego Moura e que pode ser assis­ti­do gra­tuita­mente no YouTube, já bus­ca­va rea­v­i­var as lem­branças e con­se­quên­cias daque­le incên­dio. Exibido pela primeira vez em 2014, quan­do a tragé­dia com­ple­tou 30 anos, Uma Tragé­dia Anun­ci­a­da entre­vista diver­sas pes­soas que pres­en­cia­ram o incên­dio.

“Eu cresci no bair­ro de Vila São José, a poucos met­ros de onde a tragé­dia acon­te­ceu. Então, eu cresci ouvin­do histórias, ven­do vídeos reg­istra­dos nas anti­gas fitas VHS e, em 2010, ingres­sei na fac­ul­dade de cin­e­ma. Com o tem­po, perce­bi que a memória dessa lem­brança esta­va se per­den­do, os jovens não con­heci­am a história. O cur­ta fez parte ini­cial­mente de um mero tra­bal­ho para fac­ul­dade, mas acabou se tor­nan­do o impul­sor para que a memória das víti­mas da tragé­dia e da cidade fos­sem relem­bra­dos e, mais do que isso, para que fos­se aber­ta uma nova dis­cussão sobre os efeitos da indus­tri­al­iza­ção desen­f­rea­da que acon­te­ceu na cidade de Cubatão, nas décadas de 60 e 70, e que cul­mi­nou nes­sa tragé­dia na déca­da de 80”, disse Moura, à Agên­cia Brasil.

Durante a pro­dução do doc­u­men­tário, Moura se sur­preen­deu com os depoi­men­tos das víti­mas do incên­dio. “Durante as gravações, con­heci muitas histórias impac­tantes e, se há algo que me revol­ta até hoje, foi como esse proces­so foi con­duzi­do na época da tragé­dia. Hou­ve omis­são total das autori­dades: nos dados ofi­ci­ais dizem que mor­reram ‘ape­nas 93 víti­mas’, porém os relatos das pes­soas do local dizem que foi muito mais que isso”, apon­ta.

Conhecer o passado

A intenção da músi­ca, da peça e do doc­u­men­tário para cin­e­ma sobre a Vila Socó é impedir o apaga­men­to de um incên­dio que pode ter sofri­do uma ten­ta­ti­va de abafa­men­to durante a ditadu­ra mil­i­tar. “Reduzir o impacto da tragé­dia tin­ha três obje­tivos bási­cos: evi­tar a reper­cussão nacional e inter­na­cional para a empre­sa [Petro­bras], reduzir o cus­to das ind­eniza­ções e garan­tir a impunidade. E isso tudo foi feito”, avaliou o advo­ga­do e jor­nal­ista Doji­val Vieira, durante depoi­men­to à Comis­são Estad­ual da Ver­dade de São Paulo, em 2014.

Brasília (DF) 22/02/2024 - Vila Socó (hoje Vila São José), em Cubatão. O incêndio foi causado por vazamento de combustíveis de oleodutos que ligavam a Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão (RPBC) ao terminal portuário da Alemoa. Foto: Biblioteca Municipal de Cubatão/Divulgação
Repro­dução: Brasília (DF) 22/02/2024 — Vila Socó (hoje Vila São José), em Cubatão. O incên­dio foi cau­sa­do por vaza­men­to de com­bustíveis de oleo­du­tos que lig­avam a Refi­nar­ia Pres­i­dente Bernardes de Cubatão (RPBC) ao ter­mi­nal por­tuário da Ale­moa. Foto: Bib­liote­ca Munic­i­pal de Cubatão/Divulgação — Bib­liote­ca Munic­i­pal de Cubatão/Divulgação

Mas levar a Vila Socó para os pal­cos e para a tela grande é tam­bém uma for­ma de bus­car enten­der o pas­sa­do e evi­tar sua repetição no futuro. “O papel da arte em con­tar uma história é, para mim, sem­pre traz­er à tona as histórias em si para que elas não sejam esque­ci­das, para que o apaga­men­to não acon­teça. O papel da arte é faz­er com que essa história não seja esque­ci­da e para que as futuras ger­ações pos­sam lem­brar dis­so e saber sobre o que acon­te­ceu, de fato, nesse dia. Com essa história, vamos ten­tar res­gatar memórias, res­gatar a ances­tral­i­dade e faz­er com que isso não seja esque­ci­do e para que não acon­teça nun­ca mais”, disse Sandy Andrade, 30 anos, atriz e pro­du­to­ra da peça teatral.

“Cada vez mais, a arte e o cin­e­ma são usa­dos para traz­er para a atu­al­i­dade temas que foram deix­a­dos de lado. Cada vez mais são pro­duzi­dos con­teú­dos sobre nos­so pas­sa­do. E espe­cial­mente nesse caso da Vila Socó, o cin­e­ma foi a fer­ra­men­ta que tín­hamos para traz­er essa memória tão desagradáv­el. Eu acho que as víti­mas mere­ci­am isso, como uma for­ma de hom­e­nagem. Essas mes­mas víti­mas que foram esque­ci­das e neg­li­gen­ci­adas pelas autori­dades. Acred­i­to que um dos papéis da arte é esse: mostrar e lem­brar os nos­sos erros para que não sejam cometi­dos nova­mente”, acres­cen­tou Moura.

Edição: Aline Leal

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