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Pesquisadora surda defende doutorado em Libras na UFRJ

Repro­dução: © Heloise Gripp Diniz/Arquivo Pes­soal

Geração de Heloise reivindica protagonismo para surdos na academia


Pub­li­ca­do em 13/02/2024 — 17:32 Por Viní­cius Lis­boa – Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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Uma tese de doutora­do sobre a lín­gua brasileira de sinais (libras) defen­di­da na própria lín­gua brasileira de sinais. O ineditismo da con­quista da douto­ra em lin­guís­ti­ca Heloise Gripp Diniz, de 48 anos, dá uma ideia dos obstácu­los que ela enfren­tou até ser a primeira sur­da a con­quis­tar o títu­lo no Pro­gra­ma de Pós-Grad­u­ação em Lin­guís­ti­ca da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em entre­vista por e‑mail à Agên­cia Brasil, a pesquisado­ra car­i­o­ca con­ta que é fil­ha de pais sur­dos e faz parte de uma ger­ação que reivin­di­ca o pro­tag­o­nis­mo tam­bém na acad­e­mia. “Nada sobre nós sem nós”, resume Heloise com a frase que é usa­da por mino­rias que bus­cam par­tic­i­par e lid­er­ar a pro­dução do con­hec­i­men­to sobre si próprias.

Heloise é for­ma­da em letras-libras e tem mestra­do em lin­guís­ti­ca pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al de San­ta Cata­ri­na. Na UFRJ, além de douto­ra, é pro­fes­so­ra do Depar­ta­men­to de Libras da Fac­ul­dade de Letras.

Sua tese foi sobre Vari­ação fonológ­i­ca das letras man­u­ais na sole­tração man­u­al em libras. Afi­nal, se o por­tuguês e as out­ras lín­guas fal­adas têm suas vari­ações, as lín­guas de sinais, como a Libras, tam­bém têm, expli­ca a douto­ra. Mas, como faz­er uma pesquisa de vari­ações “fonológ­i­cas”, sono­ras, em uma lín­gua de sinais? Assim como os sons das letras for­mam as palavras no por­tuguês, dimen­sões como  a con­fig­u­ração da mão, a ori­en­tação da pal­ma, o movi­men­to, a direção e a locação são as partes que com­põem o sig­nifi­ca­do trans­mi­ti­do com os sinais.

“Min­ha pesquisa evi­den­cia que há vari­ação fonológ­i­ca nas letras man­u­ais de acor­do com a sole­tração man­u­al, desta­can­do a diver­si­dade e a riqueza lin­guís­ti­ca pre­sentes nesse aspec­to da libras”.

Chegar a uma uni­ver­si­dade pres­ti­gia­da e defend­er uma pesquisa acadêmi­ca sobre sua lín­gua por meio dela própria é não ape­nas uma hon­ra ou con­quista indi­vid­ual, con­ta ela, mas parte de um avanço de toda uma comu­nidade sur­da em ascen­são.

“Este avanço não ape­nas cel­e­bra as con­quis­tas indi­vid­u­ais, mas tam­bém for­t­alece o movi­men­to mais amp­lo em prol dos dire­itos, inclusão social e recon­hec­i­men­to dos povos sur­dos e das comu­nidades sur­das, tan­to acadêmi­cas quan­to não acadêmi­cas. Essa con­quista sim­boliza um pas­so sig­ni­fica­ti­vo rumo à val­oriza­ção, vis­i­bil­i­dade e respeito pelas con­tribuições e per­spec­ti­vas úni­cas dos sur­dos em todos os aspec­tos da sociedade.

Con­fi­ra a entre­vista da pesquisado­ra à Agên­cia Brasil: 

Agên­cia Brasil — Como você avalia o cenário da pesquisa lin­guís­ti­ca em Libras hoje no Brasil?
Heloise Gripp Diniz — As pesquisas lin­guís­ti­cas na área da libras eram ante­ri­or­mente con­duzi­das medi­ante com­para­ção com a lín­gua por­tugue­sa, sem con­sid­er­ar dev­i­da­mente a estru­tu­ra lin­guís­ti­ca própria da libras. Com o recon­hec­i­men­to legal da libras como a lín­gua de sinais, con­forme esta­b­ele­ci­do pela Lei nº 10.436/2002, hou­ve uma mudança sig­ni­fica­ti­va na abor­dagem dessas pesquisas. Ago­ra, as inves­ti­gações lin­guís­ti­cas em libras são real­izadas não ape­nas em com­para­ção com o por­tuguês, mas tam­bém em conexão com out­ras lín­guas de sinais de diver­sos país­es, além das lín­guas orais. Atual­mente, a libras é recon­heci­da como uma lín­gua de sinais legí­ti­ma, equipara­da às lín­guas nat­u­rais, tan­to aque­las sinal­izadas quan­to as orais.

Agên­cia Brasil — A comu­nidade sur­da par­tic­i­pa dessas pesquisas como pesquisado­ra ou ain­da está mais no lado dos pesquisa­dos? Como vê esse pro­tag­o­nis­mo?
Heloise Gripp Diniz — Ini­cial­mente, os povos sur­dos eram con­vi­da­dos a par­tic­i­par como infor­mantes em pesquisas, algu­mas vezes com a pre­sença de intér­pretes de libras. A par­tir da déca­da de 2000, recon­heci­dos como mino­rias lin­guís­ti­cas e cul­tur­ais, os povos sur­dos começaram a ser respeita­dos e val­oriza­dos. Um mar­co desse avanço foi a for­mação da primeira tur­ma com o maior número de estu­dantes sur­dos no primeiro cur­so de grad­u­ação à dis­tân­cia de Letras Libras (licen­ciatu­ra e bachare­la­do), ofer­e­ci­do pelos 15 polos cre­den­ci­a­dos pela Uni­ver­si­dade Fed­er­al de San­ta Cata­ri­na, em 2006. Ao lon­go dos anos, ess­es estu­dantes sur­dos tornaram-se docentes em diver­sas uni­ver­si­dades e insti­tu­ições esco­lares, tan­to públi­cas quan­to par­tic­u­lares, em todo o Brasil. Atual­mente, o pro­tag­o­nis­mo sur­do está em ascen­são, com a pre­sença de mestres e doutores sur­dos, sur­dos-cegos, sur­dos com baixa visão e sur­dos indí­ge­nas em diver­sas áreas acadêmi­cas. Esse avanço demon­stra uma mudança sig­ni­fica­ti­va no recon­hec­i­men­to e val­oriza­ção das con­tribuições dos sur­dos para o ambi­ente acadêmi­co e para a sociedade em ger­al.

Agên­cia Brasil — Você foi a primeira sur­da a ser douto­ra pelo Pro­gra­ma de Pós-Grad­u­ação em Lin­guís­ti­ca da UFRJ, e a primeira a defend­er uma tese inteira­mente em libras no pro­gra­ma. O que isso rep­re­sen­ta?
Heloise Gripp Diniz — É uma imen­sa hon­ra para nos­sos povos sur­dos e as comu­nidades sur­das que, ao lon­go do sécu­lo 19 até os dias de hoje, estiver­am e ain­da estão enga­ja­dos na luta por movi­men­tos lin­guís­ti­cos e socio­cul­tur­ais. Essa luta visa reivin­dicar os dire­itos lin­guís­ti­cos e cul­tur­ais dos povos sur­dos, sur­dos-cegos, sur­dos com baixa visão e sur­dos indí­ge­nas, incluin­do as lín­guas de sinais de suas comu­nidades, além da libras. Como fil­ha de pais sur­dos, recon­hece­mos que somos os pro­tag­o­nistas das ger­ações sur­das, dan­do iní­cio ao princí­pio de “Nada sobre nós sem nós”. Esse recon­hec­i­men­to rep­re­sen­ta uma con­tinuidade na for­mação dos primeiros doutores sur­dos em relação ao mun­do de sur­dos e à libras, desta­can­do fig­uras inspi­rado­ras como a pro­fes­so­ra sur­da Glad­is Per­lin, que se tornou douto­ra em 2003. Este avanço não ape­nas cel­e­bra as con­quis­tas indi­vid­u­ais, mas tam­bém for­t­alece o movi­men­to mais amp­lo em prol dos dire­itos, inclusão social e recon­hec­i­men­to dos povos sur­dos e das comu­nidades sur­das, tan­to acadêmi­cas quan­to não acadêmi­cas. Essa con­quista sim­boliza um pas­so sig­ni­fica­ti­vo rumo à val­oriza­ção, vis­i­bil­i­dade e respeito pelas con­tribuições e per­spec­ti­vas úni­cas dos sur­dos em todos os aspec­tos da sociedade.

Agên­cia Brasil — Seu tra­bal­ho de doutora­do foi sobre vari­ações fonológ­i­cas das letras feitas com as mãos na lín­gua de sinais. Pode explicar um pouco como a fonolo­gia, que é o estu­do do som, é abor­da­da no estu­do da libras?
Heloise Gripp Diniz — Na libras, a pro­dução de sinais, equiv­a­lentes às palavras em por­tuguês, e o uso de expressões não man­u­ais e cor­po­rais fazem parte da modal­i­dade viso-ges­tu­al. Nes­sa modal­i­dade, a comu­ni­cação ocorre no apar­el­ho artic­u­latório de maneira tridi­men­sion­al, difer­ente­mente da pro­dução de palavras no apar­el­ho fon­ador, que segue uma abor­dagem lin­ear. Cada sinal em libras é for­ma­do pelos parâmet­ros fonológi­cos especí­fi­cos das lín­guas de sinais, que incluem a con­fig­u­ração da mão, ori­en­tação da pal­ma, movi­men­to, direção e locação. Além da pro­dução de sinais, existe o uso de letras man­u­ais por meio do alfa­beto man­u­al, no qual cada letra é rep­re­sen­ta­da pela for­ma da mão. Min­ha pesquisa evi­den­cia que há vari­ação fonológ­i­ca nas letras man­u­ais de acor­do com a sole­tração man­u­al, desta­can­do a diver­si­dade e a riqueza lin­guís­ti­ca pre­sentes nesse aspec­to da libras.

Agên­cia Brasil — O por­tuguês fal­a­do no Brasil tem muitas vari­ações region­ais e até den­tro de uma mes­ma região. Pode falar um pouco sobre a var­iedade lin­guís­ti­ca da lín­gua brasileira de sinais? Heloise Gripp Diniz — Assim como ocorre em todas as lín­guas humanas, a libras apre­sen­ta var­iedades lin­guís­ti­cas, nas quais os sinais podem ter suas vari­antes. Semel­hante ao por­tuguês, os aspec­tos cul­tur­ais e históri­cos das comu­nidades sur­das de uma região especí­fi­ca podem influ­en­ciar a rep­re­sen­tação de cer­tos con­ceitos em sinais, resul­tan­do em vari­ação region­al na libras. Isso inclui sinais especí­fi­cos para local­i­dades, tradições locais, ali­men­tos típi­cos e even­tos cul­tur­ais.

Agên­cia Brasil — Quais são as difi­cul­dades de pesquis­ar a lín­gua brasileira de sinais quan­do con­sid­er­amos, por exem­p­lo, refer­ên­cias acadêmi­cas, obser­vação dos obje­tos de estu­dos e recur­sos disponíveis?
Heloise Gripp Diniz — A maio­r­ia das pub­li­cações resul­tantes de pesquisas lin­guís­ti­cas sobre as lín­guas de sinais é pre­dom­i­nan­te­mente tex­tu­al, muitas vezes care­cen­do de ilus­trações ou apre­sen­tan­do ape­nas algu­mas ima­gens estáti­cas. Esse enfoque lim­i­ta­do prej­u­di­ca a com­preen­são ple­na da estru­tu­ra lin­guís­ti­ca da libras. A lín­gua de sinais não se resume ape­nas aos sinais, mas é com­ple­men­ta­da pelos mor­fe­mas clas­si­fi­cadores e pelas expressões não man­u­ais e cor­po­rais, bem como pelo espaço da sinal­iza­ção e o con­ta­to do olhar.  Além dis­so, as pesquisas lin­guís­ti­cas nes­sas lín­guas muitas vezes são con­duzi­das prin­ci­pal­mente por meio de refer­ên­cias bib­li­ográ­fi­cas, com uma quan­ti­dade reduzi­da de estu­dos basea­d­os em exper­iên­cias e inter­ações dire­tas com os povos sur­dos e a libras, bem como com os povos indí­ge­nas e suas lín­guas. Recen­te­mente, con­tu­do, as pesquisas lin­guís­ti­cas sobre as lín­guas de sinais têm ado­ta­do recur­sos tec­nológi­cos avança­dos, como o uso de links de vídeos, códi­gos de bar­ras dig­i­tais e QR Codes. São ino­vações que têm con­tribuí­do sig­ni­fica­ti­va­mente para uma rep­re­sen­tação mais dinâmi­ca e fiel da lin­guagem de sinais, respei­tan­do, assim, sua ver­dadeira estru­tu­ra lin­guís­ti­ca. Essa mudança na abor­dagem de pesquisa pro­move uma com­preen­são mais apro­fun­da­da e autên­ti­ca das nuances pre­sentes nas lín­guas de sinais.

Agên­cia Brasil — No seu per­cur­so acadêmi­co, como a fal­ta de aces­si­bil­i­dade já a prej­u­di­cou na hora de acom­pan­har aulas, apre­sen­tar tra­bal­hos e con­seguir empre­gos?
Heloise Gripp Diniz — Durante o meu per­cur­so acadêmi­co no doutora­do, enfrentei desafios rela­ciona­dos à fal­ta de intér­pretes de libras e algu­mas vezes com alguns intér­pretes pouco habil­i­ta­dos em nív­el supe­ri­or em algu­mas aulas, o que resul­tou em pre­juí­zos para o meu apren­diza­do e par­tic­i­pação nas dis­cussões com a tur­ma em sala de aula. A maio­r­ia dos pro­fes­sores não tem con­hec­i­men­to acer­ca das lín­guas de sinais e da escri­ta de sinais, e há uma escassez de con­teú­dos especí­fi­cos sobre o tema. Para con­tornar a questão, alguns pro­fes­sores envi­am seu mate­r­i­al com ante­cedên­cia para a equipe de intér­pretes de libras, per­mitin­do estu­do dirigi­do antes das inter­pre­tações em sala de aula.
Além dis­so, reuniões com pro­fes­sores ori­en­ta­dores às vezes são adi­adas dev­i­do à disponi­bil­i­dade lim­i­ta­da da equipe de intér­pretes de libras. Ess­es desafios desta­cam a neces­si­dade de uma maior con­sci­en­ti­za­ção sobre as deman­das especí­fi­cas dos alunos sur­dos no con­tex­to acadêmi­co, bus­can­do estraté­gias mais efi­cazes para garan­tir sua ple­na par­tic­i­pação e aces­so ao con­hec­i­men­to.

Agên­cia Brasil - Você é pro­fes­so­ra do Depar­ta­men­to de Libras na UFRJ. Como avaliaria a inclusão de alunos com defi­ciên­cia audi­ti­va no seu cur­so e com­para­ria com a uni­ver­si­dade como um todo?
Heloise Gripp Diniz — Os estu­dantes sur­dos que ingres­sam no nos­so cur­so de letras libras para se for­marem pro­fes­sores de libras têm aces­so a algu­mas infor­mações acadêmi­cas da uni­ver­si­dade através de vídeos grava­dos em libras, disponíveis no site do nos­so depar­ta­men­to, e de mate­ri­ais didáti­cos acessíveis, como traduções do por­tuguês para libras por meio de vídeos grava­dos, uso de leg­en­das e real­iza­ção de ativi­dades acadêmi­cas em duas lín­guas: libras e por­tuguês, com avali­ação difer­en­ci­a­da respei­tan­do a estru­tu­ra da libras, con­forme pre­vis­to no Decre­to nº 5.626/2005. Algu­mas dis­ci­plinas são min­istradas por pro­fes­sores não flu­entes em libras, con­tan­do com a pre­sença de intér­pretes nas salas de aula e com recur­sos visuais. Ao avaliar a inclusão dos estu­dantes sur­dos na uni­ver­si­dade, lev­a­mos em con­sid­er­ação as políti­cas de aces­si­bil­i­dade ado­tadas pela fac­ul­dade de letras aos poucos, pois há um esforço con­stante para con­sci­en­ti­zar toda a comu­nidade acadêmi­ca ouvinte da uni­ver­si­dade sobre os dire­itos lin­guís­ti­cos e cul­tur­ais dos alunos sur­dos. No entan­to, recon­hece­mos a neces­si­dade de mel­ho­rias con­tínuas para asse­gu­rar ple­na­mente ess­es dire­itos para os alunos, inclu­sive para nós, os docentes sur­dos nos espaços admin­is­tra­tivos. Isso inclui a avali­ação da qual­i­dade de for­mação e profis­sion­al­is­mo dos intér­pretes de libras, bem como o desen­volvi­men­to de cur­sos de libras des­ti­na­dos a profis­sion­ais e téc­ni­cos de diver­sas áreas, capac­i­tan­do-os para atu­ação em ambi­entes esco­lares e admin­is­tra­tivos. Esta­mos cientes de que ain­da há desafios a serem super­a­dos, espe­cial­mente con­sideran­do a pre­sença de estu­dantes sur­dos em out­ros cur­sos de grad­u­ação, como med­i­c­i­na, dire­ito, edu­cação e cur­sos de pós-grad­u­ação em lin­guís­ti­ca, edu­cação e ciên­cias da lit­er­atu­ra na UFRJ.

Edição: Nádia Fran­co

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