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Pioneiro, Nelson Triunfo enfrentou ditadura para dançar break na rua

Repro­dução: © Arte/Agência Brasil

Para artista, hip hop é, desde o início, cultura de resistência


Pub­li­ca­do em 13/11/2023 — 07:40 Por Daniel Mel­lo — Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

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Repro­dução: @Agência Brasil / EBC

Pio­neiro do break no Brasil, o artista Nel­son Tri­un­fo con­ta que foi pre­so muitas vezes por dançar na rua. “Eu ia pre­so dire­to. Tin­ha um del­e­ga­do no Bix­i­ga [região cen­tral paulis­tana] que, quan­do eu chega­va lá, ele fala­va: ‘poxa rapaz, você de novo’. E eu fala­va: ‘doutor, eu não gos­to de vir aqui, não’”, lem­bra sobre quan­do lev­ou o break para as ruas do cen­tro de São Paulo.

Era 1983, quan­do Tri­un­fo e seu grupo começaram a dançar na Rua 24 de Maio, aprovei­tan­do o calça­men­to com pedras grandes que per­mi­ti­am os pas­sos deslizantes. O artista já dança­va há algum tem­po nos bailes paulis­tanos, como o Chic Show, quan­do teve con­ta­to com a estéti­ca do hip hop. “O pes­soal de uma TV chamou a gente para imi­tar o pes­soal da Soul Train [pro­gra­ma de TV norte-amer­i­cano]”, con­ta.

No local onde os dançari­nos de break começaram a se apre­sen­tar ao ar livre foi colo­ca­do, em 2014, o Mar­co Zero do Hip Hop, mon­u­men­to com­pos­to por duas pedras no chão. Durante a entre­vista para o pro­gra­ma Cam­in­hos da Reportagem, da TV Brasil, havia uma van da Polí­cia Mil­i­tar sobre o mon­u­men­to.

São Paulo (SP), 10/11/2023 - O precursor do breaking ou breakdance no Brasil, Nelson Triunfo, fala sobre a cultura Hip Hop no centro da capital paulista. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Repro­dução: Pre­cur­sor do break­ing no Brasil, Nel­son Tri­un­fo fala sobre a cul­tura hip hop no país — Rove­na Rosa/Agência Brasil

“Antiga­mente ali era um jardim”, diz Tri­un­fo apon­tan­do para o out­ro lado da rua. “E a gente sen­ta­va nele e aqui a gente dança­va tudo isso. Mas, você vê o que é a desin­for­mação, uma cidade como São Paulo, cul­tur­al, se algu­ma pes­soa vem dos Esta­dos Unidos ou de algum lugar para ver o Mar­co Zero, vai encon­trar um car­ro em cima do Mar­co Zero”, recla­ma.

A pre­sença da viatu­ra não é só sim­bóli­ca de como a polí­cia trata­va o hip hop na déca­da de 1980, mas tam­bém reflete o momen­to. Tri­un­fo diz que, após a insta­lação de uma grande base da Polí­cia Mil­i­tar na esquina da Rua 24 de Maio com a Dom José de Bar­ros, deixaram de acon­te­cer as fes­tas de hip hop e reg­gae que eram real­izadas sem­anal­mente. “Toda quin­ta tin­ha o encon­tro, a Batal­ha do Point, aqui. Eles tam­bém acabaram”, lamen­ta.

Mes­mo assim, a região con­tin­ua sendo fre­quen­ta­da pelos artis­tas que fazem pal­co da rua. Enquan­to a reportagem con­ver­sa­va com Tri­un­fo, os dançari­nos Rodri­go Chaw e Rober­to Orlan­di pas­saram car­regan­do uma caixa de som e ani­man­do o ambi­ente. “Hoje, são eles que con­tin­u­am o movi­men­to na rua, nos trens. Eles vivem dis­so”, diz o vet­er­a­no a respeito dos artis­tas mais jovens, que impro­vis­aram uma apre­sen­tação com saltos mor­tais e giros de cabeça no chão.

Essa pul­são mostra, na visão de Tri­un­fo, que o hip hop foi, des­de o iní­cio, uma cul­tura de resistên­cia. “Quan­do era a época do mil­i­taris­mo [ditadu­ra] essas man­i­fes­tações não podi­am acon­te­cer e, mes­mo assim, a gente fazia elas acon­te­cerem, era uma resistên­cia”, enfa­ti­za.

Con­fi­ra abaixo os prin­ci­pais tre­chos da entre­vista com Nel­son Tri­un­fo.

Agên­cia Brasil: Para começar com essa con­ver­sa sobre hip hop sobre break, que­ria que você me mostrasse onde está o Mar­co Zero do Hip Hop aqui em São Paulo.
Nel­son Tri­un­fo: Primeiro, nós começamos em São Paulo dançan­do na frente do Map­ping [anti­ga loja de depar­ta­men­to, no cen­tro paulis­tano], do The­atro Munic­i­pal, na Praça da Sé, na Praça da Repúbli­ca. Teve um lugar que nós desco­b­ri­mos que não pre­cisa­va usar aque­le papelão [para deslizar no chão]. O lugar tin­ha umas pedras enormes de gran­i­to. Esse lugar virou, a par­tir de 1983, 1984, um lugar onde todos os dias, menos no domin­go, a gente se encon­tra­va. Então, hoje, esse [lugar] é o Mar­co Zero do Hip Hop que eu vou te mostrar. [Cam­in­ha alguns pas­sos e chega ao local onde há uma van da Polí­cia Mil­i­tar].

Infe­liz­mente, eu não vou poder mostrar para você, porque está debaixo do car­ro. Isso aqui é o Mar­co Zero, debaixo do car­ro, debaixo do pneu. Ali, está ven­do as pedras? Então, essa pedra aqui é onde tudo começou. O mar­co zero de uma cul­tura mar­avil­hosa, que nós temos campeões mundi­ais. Eles gan­ham medal­has e tudo. [A entre­vista é inter­romp­i­da pela pas­sagem de dois jovens com uma caixa de som. Jun­to com Tri­un­fo, eles dançam em uma breve apre­sen­tação impro­visa­da.] Hoje, são eles que con­tin­u­am o movi­men­to na rua, nos trens. Eles vivem dis­so. [Diz em refer­ên­cia aos jovens dançari­nos].

Agên­cia Brasil: Então, o hip hop ain­da é uma cul­tura viva por aqui?
Tri­un­fo: Assim é o hip hop. Se a gente ficar aqui, de vez em quan­do, uns [artis­tas] vão pas­sar por aqui. Pre­cisamos recu­per­ar a cul­tura do cen­tro, porque ela hoje está no Brasil inteiro. Mas foi aqui que ela começou, jus­ta­mente quan­do aqui se pare­cia um pouco com um deser­to. Quan­do era a época do mil­i­taris­mo [ditadu­ra] essas man­i­fes­tações não podi­am acon­te­cer e, mes­mo assim, a gente fazia elas acon­te­cerem, era uma resistên­cia.

Agên­cia Brasil: Essa viatu­ra em cima do Mar­co Zero então é sim­bóli­ca que a polí­cia con­tin­ua em cima do hip hop?
Tri­un­fo: Toda quin­ta-feira tin­ha o encon­tro, a Batal­ha do Point, aqui. Eles tam­bém acabaram. Você gostaria de ver isso aqui para­do, sem nada, ou gostaria de ter um pes­soal aqui, can­tan­do, riman­do e out­ros aplaudin­do? São Paulo com algo de mais ale­gre. Porque não é só de tra­bal­ho e de estu­do que vive o homem. Nós pre­cisamos tam­bém de laz­er. Nós pre­cisamos de cul­tura, cer­to?

Agên­cia Brasil: E como foi a for­mação do hip hop aqui em São Paulo, com a reunião dos qua­tro ele­men­tos – break, grafite, DJ e MC?
​Tri­un­fo: Há 50 anos, os qua­tro ele­men­tos se for­maram. Mas se for­maram porque já exis­ti­am ess­es ele­men­tos, que foram crescen­do. Em 1981, em 1982, eles há tin­ham começa­do no Bronx e ido para o cen­tro de Nova York, com o movi­men­to já em out­ro pata­mar. Nós tam­bém está­va­mos indo aqui em São Paulo, há 40 anos, porque se con­ta o iní­cio a par­tir de 1983, quan­do eu lev­ei pela primeira vez o meu grupo para a rua. Nós tam­bém já tín­hamos os qua­tro ele­men­tos.

Vozes Hip Hop arte
Repro­dução: @Agência Brasil / EBC

Agên­cia Brasil: Você fazia o que antes do hip hop?
Tri­un­fo: A base de tudo, orig­i­nal, para quem não sabe, é o funk, que trouxe tudo, com o James Brown e as ban­das de soul. Eu era do soul. Os primeiros raps que sam­plear­am, fecha­dos em qua­tro tem­pos, eram com a base do soul. Eram can­ta­dos em cima do soul. O b‑boys [dançari­nos de break] eram um som mais apres­sa­do. Break não quer diz­er dança, break é o break [para­da] da músi­ca. Quan­do dava aque­las rufadas de per­cussão, os caras ado­ravam dançar. Dançavam no break da músi­ca – break boy – cara que dança no break [inter­va­lo].

Então, nós fomos para a rua em 1983, no iní­cio. Nós já dançá­va­mos no [baile] Chic Show, o [esti­lo] robô, o wave, um pouquin­ho de lock. Quan­do nós fomos para o Black Rio, a gente dança­va só soul. Então, nós fomos ven­do algu­mas coisas lá fora e o pes­soal e uma TV chamou a gente para imi­tar o pes­soal da Soul Train [pro­gra­ma de TV norte-amer­i­cano], que eram jus­ta­mente os The Lock­ers [grupo de street dance fun­da­do na déca­da de 1970]. Só que eu nem sabia que tin­ha a ver [com hip hop]. Depois, [vier­am as influên­cias] do pop, do rock, do wave, que vin­ham mais de Fres­no de Los Ange­les [na Cal­ifór­nia (EUA)], do que de Nova York, que eram o rap e o break.

Tudo isso foi chegan­do, e eu, como já esta­va prepara­do, disse: “É ago­ra!”. Chamei o grupo, e disse: “Vamos para a rua”. Mas não era fácil. De vez em quan­do eu pega­va um BO [bole­tim de ocor­rên­cia], ia pre­so. Eu ia pre­so dire­to. Tin­ha um del­e­ga­do no Bix­i­ga [região cen­tral paulis­tana] que quan­do eu chega­va lá, ele fala­va: “poxa rapaz, você de novo”. E eu fala­va: “doutor, eu não gos­to de vir aqui, não, são os home­ns que me trazem”.

Agên­cia Brasil: Depois de todos ess­es anos, o que sig­nifi­ca este Mar­co Zero para você?
​Tri­un­fo: Aqui­lo é um sím­bo­lo, como se fos­se uma um troféu de uma Copa do Mun­do do Brasil. Para quem entende, para nós do hip hop, isso é o nos­so troféu. É como se fos­se em Meca [cidade sagra­da para o islamis­mo], onde os caras que vão [faz­er pere­gri­nação]. Cada um tem suas crenças. Isso aí é a nos­sa pedra. Mas, poxa, já devia ter uma coisa bem mais boni­ta aqui ou ali, mostran­do, como antiga­mente era o jardim que a gente sen­ta­va. Mas, por out­ro lado, estão acon­te­cen­do várias coisas mar­avil­hosas, vários even­tos que eu fui con­tem­p­lan­do os 50 anos de hip hop, pelo Brasil todo. Estou via­jan­do para aqui para acolá, tem mui­ta coisa boa em São Paulo.

Agên­cia Brasil: Você falou que dançou em vários lugares do cen­tro, mas, por que vocês escol­her­am este lugar?
​Tri­un­fo: Por causa da largu­ra das pedras [do calça­men­to]. Em uma pedra dessas aqui, dá para você girar de cabeça, era muito legal para dar o back­slide [andar de costas, deslizan­do os pés no chão] e ir emb­o­ra. Movi­men­tos de rodar a cabeça, as costas. Então, era um espaço que não tin­ha em out­ras pedras. As out­ras pedras [de calça­men­to] de rua eram peque­nas, não tin­ha como você faz­er isso. Essas pedronas era tudo o que pre­cisá­va­mos. Dança­va gente aqui, ali e dali. Bom­ba­va essa rua. Era muito legal.

Agên­cia Brasil: E como é a relação com o Largo São Ben­to, vocês pas­saram a dançar lá depois?
​Tri­un­fo: No final de 1984 eu tive prob­le­ma de saúde, dançan­do muito e não me ali­men­ta­va. Eu fui dar um pas­seio, vis­i­tar meu pes­soal [em Tri­un­fo, Per­nam­bu­co]. Fui emb­o­ra pas­sar, uns dias lá com meus pais, min­ha irmã. Em 1985, começou o ano e os caras que fazi­am parte do grupo comi­go voltaram para dançar aqui. Só que a polí­cia pegou pesa­do com eles. Não deu jeito, não deu cer­to. Aí, eles começaram a procu­rar um lugar para ensa­iar. Foram no Bom Retiro, foram na [aveni­da] Tiradentes. Mas, desco­bri­ram a [estação] São Ben­to, que foi aqui­lo que deu cer­to.

Já foram chegan­do o Thaíde, o DJ Hum, o Mano Brown, um boca­do de gente. Todo mun­do fez parte ali da São Ben­to. Os próprios Gêmeos [grafiteiros], eu me lem­bro que o Marcelin­ho e o Alam­bique iam bus­car eles lá no Cam­bu­ci [bair­ro da zona sul], na casa da mãe deles, que eles eram pequenos demais, não dava pra virem soz­in­hos. A São Ben­to estourou, virou aque­le point nacional. Fui lá onde se fez o primeiro even­to nacional de dis­pu­ta de danças e de batal­has.

Edição: Juliana Andrade

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