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Rapper denuncia racismo ambiental no contexto da tragédia no RS

Repro­dução: © Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Rafa Rafuagi enfrentou catástrofe e coordena doações na capital


Publicado em 26/05/2024 — 14:23 Por Pedro Rafael Vilela — Enviado Especial — Porto Alegre

Em menos de seis meses de fun­ciona­men­to, o recém-inau­gu­ra­do Museu da Cul­tura Hip Hop, o primeiro e úni­co do gênero na Améri­ca Lati­na, local­iza­do na zona norte de Por­to Ale­gre, se tornou um espaço impor­tante na logís­ti­ca de cole­ta e dis­tribuição de doações às famílias afe­tadas pela enchente na região met­ro­pol­i­tana da cap­i­tal gaúcha.

Porto Alegre (RS), 25/05/2024 – CHUVAS RS - MUSEU DO HIP HOP - Museu da Cultura Hip Hop, na Zona de Porto Alegre, virou central para recebimento e destinação de doações na emergência climática gaúcha. Inaugurado em 2023, o Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul conta a história do gênero no estado. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Repro­dução: Museu da Cul­tura Hip Hop tornou-se cen­tral para rece­bi­men­to e des­ti­nação de doações no RS. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Quem dá as coor­de­nadas na ação, que envolve dezenas de pes­soas, é o ativista, rap­per e MC Rafa Rafua­gi, uma das prin­ci­pais refer­ên­cias da cul­tura de per­ife­ria no Rio Grande do Sul. Ali, em pouco mais de três sem­anas de emergên­cia climáti­ca, foram 200 toneladas de itens como roupas, cober­tores, camas, colchões, água, ali­men­tos, entre out­ros, escoa­d­os para as regiões mais atingi­das de pelo menos 10 municí­pios do esta­do.

“A gente está na fase da retoma­da dos lares. Não esta­mos na fase mais críti­ca, quan­do tin­ha fal­ta de ali­men­to, de água, de tudo”, descreve Rafua­gi, que rece­beu a reportagem da Agên­cia Brasil na man­hã de sába­do (25), na sede do museu, onde coman­da­va a saí­da de mais um cam­in­hão de entre­ga, reple­to de colchões e roupas de cama, com des­ti­no a Canoas.

Ele próprio viveu na pele essa fase dramáti­ca do esta­do.

“Quan­do tu tá ven­do a água subir, parece cena do [filme] Titan­ic, as pes­soas com coisas na mão ten­tan­do cor­rer para sal­var algo, as mães com cri­anças no colo. Um viz­in­ho me aju­dou a subir a geladeira, os móveis, mas não adiantou nada. Foi tudo per­di­do”, con­ta.

Rafua­gi, 36 anos, é por­to-ale­grense de nasci­men­to, mas cresceu em Esteio, na região met­ro­pol­i­tana, onde fun­dou uma Casa de Cul­tura Hip Hop. O espaço é a semente do que veio a ser o museu, e berço de um ativis­mo que teve seu ápice no ano pas­sa­do, quan­do rap­per foi figu­ra cen­tral na cer­imô­nia que mar­cou a edição, pelo gov­er­no fed­er­al, de um decre­to de fomen­to da cul­tura per­iféri­ca e apre­sen­tação de um pro­je­to de lei para insti­tuir o Dia Nacional do Hip Hop no Brasil. Cul­tura pre­ta por excelên­cia, for­ja­da nas per­ife­rias das metrópoles, o Hip Hop que corre nas veias de Rafua­gi o faz denun­ciar o apaga­men­to da pre­sença afro-gaúcha em con­tex­to de grande sofri­men­to da pop­u­lação.

Porto Alegre (RS), 25/05/2024 – CHUVAS RS - MUSEU DO HIP HOP - Inaugurado em 2023, o Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul conta a história do gênero no estado. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Repro­dução: Inau­gu­ra­do em 2023, o Museu da Cul­tura Hip Hop do Rio Grande do Sul con­ta a história do gênero no esta­do. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Há cer­ca de 10 dias, em uma visi­ta a São Leopol­do, out­ra cidade da região met­ro­pol­i­tana, o pres­i­dente Luiz Iná­cio Lula da Sil­va desta­cou a expres­si­va pre­sença de pes­soas negras no do Rio Grande do Sul, sobre­tu­do as víti­mas da enchente, após vis­i­tar abri­go e ver ima­gens na tele­visão.

“Em São Leopol­do, onde o pres­i­dente esta­va, uma das maiores per­ife­rias é a Feito­ria, bair­ro mais pop­u­loso da cidade, com dezenas de mil­hares de pes­soas negras. (…) A enchente rev­el­ou, talvez, uma das faces que escan­cara tudo isso. Não estou dizen­do que são majori­tari­a­mente pes­soas negras, acho que todo mun­do perdeu igual, e não estou aqui para diz­er que um perdeu mais e out­ro perdeu menos. Todo mun­do perdeu igual, infe­liz­mente”, diz Rafua­gi.

Ape­sar dis­so, argu­men­ta, há um apaga­men­to que recai sobre a pele negra quan­do se pen­sa no Rio Grande do Sul. Ele cita, por exem­p­lo, que um pro­gra­ma de tele­visão foi ded­i­ca­do a artis­tas gaú­chos, porém só havia a pre­sença de bran­cos e rep­re­sen­tantes de gêneros não per­iféri­cos.

“Pop­u­lares [os artis­tas], talvez, mas não per­iféri­cos. Nesse sen­ti­do, a gente vê que é impor­tante mostrar essa par­tic­i­pação do negro na con­strução do esta­do e na ação própria emer­gen­cial que esta­mos viven­do”, acres­cen­ta.

Racismo ambiental

Mapas pro­duzi­dos pelo Núcleo Por­to Ale­gre do Obser­vatório das Metrópoles mostram uma demar­cação muito clara de desigual­dade de ren­da e de raça nas pes­soas que foram mais atingi­das pela catástrofe. As áreas mais ala­gadas foram, prin­ci­pal­mente, as mais pobres, com impacto pro­por­cional­mente muito maior sobre a pop­u­lação negra, que rep­re­sen­ta cer­ca de 21% dos habi­tantes do esta­do, segun­do o Cen­so 2022 do Insti­tu­to Brasileiro de Geografia e Estatís­ti­ca.

Nesse caso, as áreas que mais sofr­eram com as inun­dações apre­sen­tam con­cen­tração expres­si­va de pop­u­lação pre­ta e par­da, geral­mente aci­ma da média dos municí­pios. É o caso de bair­ros como Humaitá, Saran­di e Rubem Berta, em Por­to Ale­gre, e de Math­ias Vel­ho, em Canoas.

“Existe uma questão de racis­mo ambi­en­tal na cidade que está rela­ciona­do à catástrofe, essa relação de fal­ta de lugares mais arboriza­dos e as per­ife­rias estarem viradas em con­cre­to, não terem praças. Se a gente for no Saran­di, que é o bair­ro que mais alagou [em Por­to Ale­gre], são pouquís­si­mos espaços de laz­er, espaços arboriza­dos ou espaço que, de fato, as pes­soas pos­sam pen­sar em ações cole­ti­vas, como hor­tas comu­nitárias, uma ação pop­u­lar. Não há um plano que pense a mudança desse par­a­dig­ma, de con­stru­ir mais espaços que pos­sam pen­sar a qual­i­dade do ar”, anal­isa Rafua­gi.

Para ele, isso se com­bi­na de for­ma per­ver­sa com um nega­cionis­mo cien­tí­fi­co que pre­domi­nou nas políti­cas públi­cas no esta­do.

Rafa Rafua­gi apon­ta ain­da neg­ligên­cia nos aler­tas de evac­uação por causa de rompi­men­to de diques, o que impediu que os moradores con­seguis­sem sal­var bens e sair das casas antes das inun­dações, além da fal­ta de manutenção do sis­tema de pre­venção nas áreas mais pobres. “Hou­ve uma neg­ligên­cia, tan­to da infor­mação, da questão de aler­tas, de rompi­men­to de diques. […] Há, no esta­do mais racista do Brasil, um nega­cionis­mo sobre a questão, de que não é inves­ti­men­to a questão ambi­en­tal, mas cus­to”.

Negritude gaúcha

Emb­o­ra nor­mal­mente asso­ci­a­do à col­o­niza­ção europeia bran­ca do sécu­lo 19, o Rio Grande do Sul é ter­ra de nomes fun­da­men­tais do movi­men­to negro, como o poeta e escritor Oliveira Sil­veira (1941–2009), um dos cri­adores do Grupo Pal­mares, que ide­al­i­zou o dia 20 de novem­bro, data da morte de Zumbi dos Pal­mares, como o Dia da Con­sciên­cia Negra, em detri­men­to do 13 de maio, data da Abolição da Escravidão.

E de Petron­il­ha Sil­va, pro­fes­so­ra por­to-ale­grense, rela­to­ra no Con­sel­ho Nacional de Edu­cação do pro­je­to que tornou obri­gatória o ensi­no de história e cul­tura afro-brasileira nos cur­rícu­los das insti­tu­ições de edu­cação bási­ca, com a edição da Lei 10.639, em 2003, até hoje não ple­na­mente cumpri­da.

Na história da con­strução do próprio esta­do, foram pre­tos escrav­iza­dos que com­puser­am a lendária infan­taria dos Lan­ceiros Negros, que for­mou parte do exérci­to gaú­cho na Rev­olução Far­roupil­ha, mas que mais tarde acabaram sendo chaci­na­dos em uma embosca­da prepara­da pelo exérci­to impe­r­i­al coman­dan­do por Duque de Cax­i­as. Muitos his­to­ri­adores vin­cu­lam o mas­sacre dos Poron­gos, como ficou con­heci­da a embosca­da, a uma ação orquestra­da em acor­do com o chefe mil­i­tar dos far­ra­pos, David Can­abar­ro, o que facil­i­tou um acor­do de paz entre a elite rio-grandense e o Império.

“É fun­da­men­tal que haja um proces­so de opor­tu­nizar que a história do negro do Rio Grande do Sul pos­sa gan­har escala nacional, uma evidên­cia mais forte. Porque isso, inclu­sive, gera um proces­so inver­so que os bran­cos xenofóbi­cos racis­tas gaú­chos fazem com o Norte e Nordeste. Por exem­p­lo, ago­ra, com a enchente, tin­ha mui­ta gente falan­do: ‘ah, por que aju­dar o Sul? O Sul só tem bran­co, o Sul não sei o quê’. E esque­cem que exis­tem negros, um monte de ter­reiro de matriz africana aqui no Sul”.

“Ago­ra, de fato, os negros não são a maio­r­ia da pop­u­lação no esta­do. Eles estão espal­ha­dos em regiões que não são, em grande parte, na área met­ro­pol­i­tana, emb­o­ra haja muitos negros na met­ro­pol­i­tana. Ess­es negros estão na região sul do esta­do, que foi o cam­in­ho da migração durante a escrav­iza­ção, o por­to de Rio Grande [litoral sul] como pon­to de entra­da. E eles ficaram mais por ali: Tapes, Camaquã, Aram Baré, Can­gus­su, Turuçu, Cristal, Pelotas, Rio Grande e Jaguarão. Em todas essas regiões, a pop­u­lação é negra, majori­tari­a­mente. Por out­ro lado, na região da Ser­ra [Gaúcha], que são lugares majori­tari­a­mente mais bran­cos, por causa das colô­nias ital­iana e alemã, onde se assen­taram e tiver­am seus priv­ilé­gios, não são tão habitadas por negros”, expli­ca o rap­per.

Afroturismo

Rafua­gi pre­vê a retoma­da da pro­gra­mação nor­mal do Museu da Cul­tura Hip Hop já na próx­i­ma sem­ana. Até e eclosão das enchentes, o espaço rece­bia um média de 1 mil vis­i­tantes por sem­ana, a maio­r­ia estu­dantes do ensi­no bási­co. Com cer­ca de 4 mil met­ros quadra­dos, o espaço con­ta com a exibição de mais de 500 artefatos, painéis e arquiv­os dig­i­tais que con­tex­tu­al­izam a história do hip hop no esta­do, no Brasil e no mun­do. Além dis­so, na área exter­na, há quadra, um mul­ti­pal­co, sala de ofic­i­nas e uma hor­ta que pro­duz fru­tas e hor­tal­iças doadas para comu­nidades.

Porto Alegre (RS), 25/05/2024 – CHUVAS RS - MUSEU DO HIP HOP - Inaugurado em 2023, o Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul conta a história do gênero no estado. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Repro­dução:  Museu da Cul­tura Hip Hop do Rio Grande do Sul recebe 1 mil vis­i­tantes por sem­ana. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

A equipe do museu ago­ra pre­tende dar anda­men­to a um pro­je­to que pre­vê a estru­tu­ração de um roteiro turís­ti­co de cul­tura negra em Por­to Ale­gre, em parce­ria com a Agên­cia Brasileira de Pro­moção Inter­na­cional do Tur­is­mo (Embratur).

“Esse afro­tur­is­mo bus­ca conec­tar pon­tos de memória ou ação práti­ca do movi­men­to negro, em todo o Brasil, para que as pes­soas quan­do vierem aqui não irem ape­nas a Gra­ma­do, um lugar bran­co e europeu. Virem no Museu do Hip Hop, irem no galpão cul­tur­al no Mor­ro da Cruz, na casa do Hip Hop em Esteio, irem lá no pavil­hão eco sus­ten­táv­el na Restin­ga, que é um bair­ro per­iféri­co daqui”, propõe o MC gaú­cho.

Edição: Car­oli­na Pimentel

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