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Repulsivas para sociedade, como é a vida das trans egressas da prisão

Repro­dução: © Eduar­do Reina/Agência Brasil

Sem apoio, muitas retornam para o crime ou para a prostituição


Pub­li­ca­do em 20/01/2024 — 09:03 Por Eduar­do Reina – Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

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As mul­heres trans­sex­u­ais egres­sas do sis­tema pri­sion­al brasileiro são dupla­mente penal­izadas pela sociedade e pela Justiça. A dura e dramáti­ca real­i­dade enfrenta­da atrás das grades é uma repro­dução da vida fora das cadeias. São con­sid­er­adas pela sociedade como inex­pres­si­vas e repul­si­vas. 

A expec­ta­ti­va de vida de uma mul­her tran­sex­u­al egres­sa do sis­tema pri­sion­al no Brasil é, em média, de menos de 35 anos, algo semel­hante à vida que um cidadão brasileiro tin­ha há mais de 120 anos. O Brasil é o país que mais mata tran­sex­u­ais e trav­es­tis. O país lid­era pelo 14º ano con­sec­u­ti­vo o rank­ing mundi­al de homicí­dios de pes­soas trans elab­o­ra­do pelo Trans Mur­der Mon­i­tor­ing, da Trans­gen­der Europe (TGEU).

Elas saem de casa quan­do têm em torno de 15 ou 16 anos de idade e vão viv­er sua própria vida. Na rua pas­sam por pri­vações e invari­avel­mente, sem alter­na­ti­vas, se envolvem com o crime.

O cotid­i­ano de muitas delas tem a morte vio­len­ta como con­se­quên­cia, além da prisão e pri­vações per­ante a sociedade. De acor­do com o Anuário Brasileiro de Segu­rança Públi­ca 2023 e a Asso­ci­ação Nacional de Trav­es­tis e Tran­sex­u­ais (Antra) foram con­tabi­lizadas 131 víti­mas trans e trav­es­tis de homicí­dio em 2022, sendo que 90% dessas víti­mas tin­ham entre 15 e 40 anos de idade. O GGB (Grupo Gay da Bahia) con­tabi­li­zou 256 víti­mas LGBTQIA+ de homicí­dio no Brasil no mes­mo perío­do.

Já o Esta­do brasileiro rela­tou 163 casos em 2022, 63% do que con­tabi­li­zou a orga­ni­za­ção da sociedade civ­il, demon­stran­do que as estatís­ti­cas ofi­ci­ais pouco infor­mam sobre a real­i­dade da vio­lên­cia con­tra LGBTQIA+ no país.

Quan­do ingres­sam nas prisões, têm sua iden­ti­dade de gênero desle­git­i­ma­da. São pre­sas, em ger­al, em esta­b­elec­i­men­tos pen­i­ten­ciários mas­culi­nos e tratadas por pronomes mas­culi­nos. Vivem sob a mão pesa­da das regras impostas por facções crim­i­nosas.

A maior parte das pes­soas trans que está envolvi­da em crimes, de acor­do com dados do gov­er­no fed­er­al de 2020, ain­da aguardam jul­ga­men­to. Ou seja, está pre­sa pro­vi­so­ri­a­mente. Come­ter­am crimes de menor poten­cial ofen­si­vo, como fur­to, roubo, trá­fi­co ou asso­ci­ação ao trá­fi­co. No ger­al, 41% dos pre­sos brasileiros são pro­visórios, segun­do relatório final da CPI do Sis­tema Carcerário brasileiro.

De acor­do com o Con­sel­ho Nacional de Justiça (CNJ), de jul­ho de 2021 a jul­ho de 2022, 27 escritórios soci­ais que fun­cionam em 21 unidades da fed­er­ação realizaram 15.677 atendi­men­tos a egres­sos e 1.872 atendi­men­tos a famil­iares. Dess­es, 79 atendi­men­tos foram real­iza­dos a pes­soas autode­clar­adas trans egres­sas e dois atendi­men­tos foram feitos a famil­iares dessas pes­soas.

Trav­es­tis e mul­heres trans enfrentam difi­cul­dades para obter aces­so ao mer­ca­do for­mal de tra­bal­ho. Estu­dos rev­e­lam que mais de 90% das trav­es­tis brasileiras uti­lizam a pros­ti­tu­ição como fonte primária de ren­da. Sem alter­na­ti­vas tam­bém pas­sam a atu­ar no trá­fi­co de dro­gas ou em asso­ci­ação aos traf­i­cantes.

É o caso de Rafaeli Sá Ravache, 31 anos de idade, nasci­da no Maran­hão. Foi para São Paulo cap­i­tal ain­da jovem. Esteve envolvi­da com trá­fi­co e rou­bos, foi parar na prisão pela primeira vez em 2018, no Cen­tro de Detenção Pro­visória de Pin­heiros, na cap­i­tal. Saiu em condi­cional e voltou para trás das grades em 2021, envolvi­da em ten­ta­ti­va de latrocínio.

Ela pas­sou por pen­i­ten­ciárias pelo inte­ri­or do esta­do. Disse que teve o cabe­lo ras­pa­do e usa­va o mes­mo uni­forme dos home­ns. Ao sair e sem ter para onde ir, foi morar na rua. Se esta­b­ele­ceu debaixo de um viadu­to próx­i­mo da Rodovia Anchi­eta, na cidade de São Bernar­do do Cam­po.

São Paulo (SP), 19.01.2024 - Trans Egressas Sistema Prisional - Rafaeli Sá Ravache parou o tratamento hormonal, quer trocar o nome nos documentos e dorme em albergue em São Bernardo do Campo. Foto: Eduardo Reina/Agência Brasil
Repro­dução: Rafaeli Sá Ravache parou o trata­men­to hor­mon­al, quer tro­car o nome nos doc­u­men­tos e dorme em alber­gue em São Bernar­do do Cam­po — Foto: Eduar­do Reina/Agência Brasil

Um dos prin­ci­pais prob­le­mas enfrenta­dos, além da fal­ta de ali­men­to e din­heiro, foi a inter­rupção do trata­men­to com hor­mônio que vin­ha receben­do no sis­tema pen­i­ten­ciário, con­forme deter­mi­na a leg­is­lação em vig­or. “Tive que parar. Na cadeia a lei garante o trata­men­to com hor­mônio. Mas na rua não temos mais nada”, queixa-se.

Vem viven­do com algum din­heiro obti­do com pro­gra­mas sex­u­ais, mas con­segue sobre­viv­er com a aju­da ofer­e­ci­da por uma insti­tu­ição pri­va­da. Dorme num alber­gue da prefeitu­ra. Seu obje­ti­vo é obter algu­ma bol­sa de aju­da finan­ceira do gov­er­no fed­er­al.

“Ven­ho ten­tan­do faz­er a reti­fi­cação do meu doc­u­men­to, para colo­car o nome social. É bem difí­cil sobre­viv­er com doc­u­men­to com nome mas­culi­no, sem din­heiro e sem apoio fora da prisão”, expli­ca Rafaeli.

Na insti­tu­ição que esta­va em São Bernar­do do Cam­po ela começou a faz­er cur­so de inglês.

Dados do Depar­ta­men­to Pen­i­ten­ciário Nacional (Depen) apon­tam que 3% das unidades pri­sion­ais brasileiras têm alas des­ti­nadas ao públi­co LGBTI.

A morte que persegue

Há pouco mais de 8 anos, Lean­dra Esley, 22 anos de idade, saiu de casa no inte­ri­or do Ceará para morar em For­t­aleza. Bus­ca­va sua inde­pendên­cia e evi­tar “pre­ocu­pação com a família”. Foi faz­er pro­gra­mas. “Saí porque sou LGBT des­de cri­anças. Quero crescer na vida e dar uma vida mel­hor para a família”, rev­ela.

Em janeiro de 2023 foi pre­sa, com dro­gas. “Mas não era min­ha”, garante. Per­maneceu pre­sa por 3 sem­anas e quan­do voltou para as ruas se viu obri­ga­da a faz­er pro­gra­mas. Aguar­da jul­ga­men­to em liber­dade.

“Pas­sei por muito con­strang­i­men­to na cadeia. E aqui fora não tem como con­seguir tra­bal­ho. A gente vai para o lado mais fácil para poder gan­har din­heiro e sobre­viv­er”, desabafa Lean­dra, que usa as redes soci­ais para faz­er pro­pa­gan­da de seus serviços. Ela atende os clientes em casa e tam­bém faz alguns “bicos” como cabeleireira.

No dia em que con­ver­sa­va com a reportagem da Agên­cia Brasil e con­ta­va sobre sua vida, Lean­dra comen­tou sobre o assas­si­na­to de uma out­ra trans ami­ga sua, que mora­va na cidade de Quix­adá. “Ela pegou prisão e esta­va usan­do tornozeleira. Mataram ela quan­do saiu do cabaré”, con­ta. E naque­la man­hã, out­ra trav­es­ti egres­sa do sis­tema pri­sion­al havia sido mor­ta em For­t­aleza. Era Alice, assas­si­na­da com qua­tro tiros na per­ife­ria da cap­i­tal cearense.

“Ninguém respei­ta a gente. Mataram a Alice, eram umas 5 h da man­hã. A sociedade enx­er­ga a gente como um obje­to qual­quer”, desabafa.

Ciente do peri­go que corre na rua como egres­sa, trans e com quase nen­hu­ma assistên­cia, Alyne Gabriele Gois San­tos, de 20 anos de idade, son­ha faz­er um cur­so de enfer­magem ou mes­mo ser médi­ca. Ela ficou apreen­di­da na Fun­dação Casa, anti­ga Febem, em São Paulo, por vários anos. Foi pre­sa em Itu, acu­sa­da de fur­tar o tele­fone de um estu­dante uni­ver­sitário.

“Vivia de pros­ti­tu­ição e fazen­do fur­tos com out­ras trav­es­tis em Itu”, con­ta. Atual­mente não faz mais pro­gra­mas e con­seguiu sair da vida do crime somente porque teve o apoio de insti­tu­ições par­tic­u­lares. “Me der­am bas­tante apoio, porque quan­do sai da detenção não con­seguia me colo­car em nen­hum lugar, nen­hum emprego”, expli­ca.

Alyne está casa­da com um rapaz morador de Itu e bus­ca se qual­i­ficar no ensi­no para depois tra­bal­har como enfer­meira ou médi­ca. “É um son­ho e vou me esforçar. Foi muito difí­cil o tem­po que pas­sei pre­sa. Entrei pesan­do 75 qui­los e sai com 122 qui­los”, rela­ta.

Edição: Fer­nan­do Fra­ga

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