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Sarampo matava mais de 2,6 milhões por ano no mundo antes de vacinas

Repro­dução: © Marce­lo Camargo/Agência Brasil

No Brasil, imunização contra a doença teve início em 1967


Pub­li­ca­do em 06/09/2023 — 07:27 Por Viní­cius Lis­boa — Repórter da Agên­cia Brasil* — Rio de Janeiro

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Inte­grante da Comis­são Per­ma­nente de Asses­so­ra­men­to em Imu­niza­ções do Esta­do de São Paulo, Gui­do Levi con­ta que no iní­cio dos anos 2000 foi chama­do por um grupo de res­i­dentes em uma enfer­maria de doenças infec­ciosas em São Paulo. Os jovens médi­cos estavam intri­ga­dos que nen­hum exame pro­pos­to havia detec­ta­do a causa de erupções cutâneas e febre alta que havi­am lev­a­do uma cri­ança à inter­nação.

04/09/2023, Guido Levi é integrante da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações do Estado de São Paulo e da Sociedade Brasileira de Imunizações. Doenças eliminadas por vacinas matavam mais que guerras mundiais. Foto: Divulgação/SBIm
Repro­dução: Gui­do Levi apon­ta que, com vaci­nação, boa parte da pop­u­lação descon­hece gravi­dade do saram­po  — Divulgação/SBIM

“Ninguém sabia o que era. Os res­i­dentes dis­ser­am que iam apre­sen­tar os exam­es pedi­dos, que ain­da não tin­ham resul­ta­dos pos­i­tivos, e eu falei: ‘Gente, não pre­cisa de exame nen­hum. Isso é saram­po’. Eles ficaram muito descon­fi­a­dos, porque nun­ca tin­ham vis­to saram­po”, lem­bra Gui­do Levi.

O suces­so da imu­niza­ção fez com que boa parte da pop­u­lação e até médi­cos esque­cessem que o saram­po é uma doença grave e letal. Segun­do o Min­istério da Saúde, uma em cada 20 cri­anças com saram­po pode desen­volver pneu­mo­nia, que é a causa mais comum de morte por saram­po na infân­cia. Além dis­so, cer­ca de uma em cada dez cri­anças com saram­po desen­volvem uma otite agu­da que pode resul­tar em per­da audi­ti­va per­ma­nente. A Orga­ni­za­ção Pan-Amer­i­cana da Saúde (Opas) esti­ma que, de 2000 a 2017, a vaci­nação con­tra o saram­po evi­tou cer­ca de 21,1 mil­hões de mortes, tor­nan­do a vaci­na um dos mel­hores inves­ti­men­tos em saúde públi­ca.

“O saram­po era uma das doenças mais graves que acome­ti­am a infân­cia e uma das que causavam maior mor­tal­i­dade. Quan­do fui con­sul­tor do Hos­pi­tal Infan­til da Cruz Ver­mel­ha Brasileira, em São Paulo, no começo da déca­da de 1980, metade do hos­pi­tal era toma­da por cri­anças com saram­po, e com altís­si­ma mor­tal­i­dade”, lem­bra Gui­do Levi, que viu as vaci­nas trans­for­marem esse cenário.

A imu­niza­ção con­seguiu elim­i­nar essa doença não ape­nas do Brasil, mas de todo o con­ti­nente amer­i­cano, o que foi recon­heci­do pela Opas em 27 de setem­bro de 2016. Na época, a orga­ni­za­ção lem­brou que o saram­po chegou a matar 2,6 mil­hões de pes­soas por ano no mun­do antes da déca­da de 1980. Para se ter uma ideia do que esse número rep­re­sen­ta, ele é maior do que o total de víti­mas da covid-19 no primeiro ano de pan­demia.

Dia D de mobilização da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite e Sarampo.
Repro­dução: Vaci­nação con­tra o saram­po no Brasil teve iní­cio em 1967 — Marce­lo Camargo/Agência Brasil

A vaci­nação con­tra o saram­po no Pro­gra­ma Nacional de Imu­niza­ções (PNI), que com­ple­ta 50 anos em 2023, se dá por meio das vaci­nas trí­plice viral e tetra viral. A primeira é apli­ca­da quan­do a cri­ança com­ple­ta o primeiro ano de vida, e pro­tege con­tra saram­po, cax­um­ba e rubéo­la. Já a segun­da é indi­ca­da para os 15 meses de vida, com ao menos 30 dias de inter­va­lo após a trí­plice viral.

Na tetra viral, além das três doenças da trí­plice, a pro­teção inclui a varicela, cau­sado­ra da cat­a­po­ra na infân­cia e da her­pes zoster na vida adul­ta. Quan­do a tetra não estiv­er disponív­el no pos­to, ela pode ser sub­sti­tuí­da por uma dose da trí­plice viral e uma dose da vaci­na varicela mono­va­lente.

Risco permanente

A coor­de­nado­ra da Asses­so­ria Clíni­ca do Insti­tu­to de Tec­nolo­gia em Imuno­bi­ológi­cos da Fun­dação Oswal­do Cruz (Bio-Man­guin­hos/­Fiocruz), Lur­dinha Maia, desta­ca que a per­cepção de que o saram­po é uma doença grave não pode se perder, porque somente a vaci­nação em altas cober­turas pode impedir que o alto nív­el de mor­tal­i­dade retorne.

“A visão que se tem da gravi­dade de uma doença é muito impor­tante. O saram­po não é uma doença triv­ial. A cada mil cri­anças, pode haver até 3 mortes. Pode haver ence­falite, otite, pneu­mo­nia”, desta­ca ela. “Hou­ve uma que­da de 80% nas mortes por saram­po entre 2000 e 2017 no mun­do. Em 2017, 85% das cri­anças do mun­do rece­ber­am uma dose da vaci­na con­tra o saram­po no primeiro ano de vida. Mas uma úni­ca dose não inter­rompe a cir­cu­lação e não dá a pro­teção necessária. E a gente pre­cisa cumprir a meta de 95%.”

O saram­po tam­bém é uma doença que pode causar seque­las sev­eras. A super­in­ten­dente de práti­cas assis­ten­ci­ais da AACD, Alice Rosa Ramos, cita que cri­anças e adul­tos podem per­manecer com grandes com­pro­me­ti­men­tos visuais, audi­tivos, int­elec­tu­ais e físi­cos após um quadro de saram­po.

04/09/2023, Coordenadora da Assessoria Clínica de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Lurdinha Maia. Doenças eliminadas por vacinas matavam mais que guerras mundiais. Foto: Bernardo Portella/ Fiocruz
Repro­dução: Lur­dinha Maia aler­ta que ape­nas uma dose da vaci­na con­tra o saram­po não dá a pro­teção necessária Bernar­do Portella/ Fiocruz

“São cri­anças que vão pre­cis­ar ser cuidadas ao lon­go de toda vida. A pólio causa a par­al­isia flá­ci­da, que é o mús­cu­lo atrofi­a­do, mas molin­ho. Mas, tan­to no saram­po como na menin­gite, a gente tem uma lesão cere­bral. Ocorre um aumen­to do tônus mus­cu­lar, cau­sa­do por uma lesão cen­tral, com mús­cu­los muito ten­sos, que fazem a pes­soa entrar em várias deformi­dades”, com­para ela, que detal­ha: “Na visão, pos­so ter des­de a baixa de visão até a cegueira total. Da mes­ma for­ma que no int­elec­to, que pos­so ter cri­anças que enten­dem um pouco ou que deix­am de enten­der abso­lu­ta­mente tudo. E isso pode afe­tar um adul­to tam­bém.”

Prevenível há décadas

A vaci­nação con­tra o saram­po no Brasil foi ini­ci­a­da em 1967, e a pre­venção con­tra a doença já fazia parte do primeiro cal­endário bási­co de imu­niza­ção dos menores de 1 ano de idade, insti­tuí­do dez anos depois. Alta­mente trans­mis­sív­el, essa virose lev­ou quase 60 anos para ser con­sid­er­a­da elim­i­na­da do país, com o suces­so da imu­niza­ção, mas ape­nas dois anos de baixas cober­turas vaci­nais per­mi­ti­ram que ela voltasse, em 2018. Para espe­cial­is­tas em vaci­nação, esse retorno é um exem­p­lo con­cre­to de que não se pode relaxar com a pre­venção às doenças imuno­pre­veníveis.

Para a con­sul­to­ra da Opas e ex-coor­de­nado­ra do Pro­gra­ma Nacional de Imu­niza­ções (PNI), Car­la Domingues, é necessário um tra­bal­ho forte de comu­ni­cação para que a pop­u­lação volte a recon­hecer os riscos de não se vaci­nar e de não vaci­nar seus fil­hos.

“Bas­taram dois anos para o país ter sur­tos impor­tantes, virar endêmi­co e perder a cer­ti­fi­cação de país livre do saram­po. É algo que pode acon­te­cer com a pólio. Tam­bém podemos voltar a ter sur­tos de dif­te­ria, menin­gite, coqueluche. Ape­sar de não ver­mos mais essas doenças, se deixar­mos de vaci­nar, elas voltarão a ser prob­le­mas de saúde públi­ca.”

Dia D de mobilização da Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite e Sarampo.
Repro­dução: Baixa cober­tu­ra vaci­nal per­mi­tiu a vol­ta do saram­po ao país — Marce­lo Camargo/Agência Brasil

Os riscos que esse prob­le­ma pode causar vão além do adoec­i­men­to das próprias pes­soas infec­tadas por ess­es vírus e bac­térias, expli­ca Car­la Domingues. Como a pan­demia de covid-19 mostrou, sur­tos de uma doença forçam os serviços de saúde a des­ti­nar recur­sos humanos e físi­cos ao trata­men­to dela, o que pode prej­u­dicar out­ros pacientes.

“Se hoje nós temos leitos para cuidar de aci­dentes de trân­si­to e para cuidar de doenças não trans­mis­síveis como câncer e dia­betes, é porque a gente não tem mais ess­es leitos sendo uti­liza­dos para doenças imuno­pre­veníveis. Se a gente voltar a ter sur­tos dessas doenças, ter­e­mos um esgo­ta­men­to do serviço de saúde, como o exem­p­lo que a gente acabou de ver com a covid-19, em que doenças deixaram de ser tratadas porque pre­cisá­va­mos tratar a covid-19.”

Esquema de duas doses

A vaci­nação con­tra o saram­po sofre de um prob­le­ma comum a vaci­nas cujo esque­ma vaci­nal requer mais de uma dose: a baixa na adesão. Em 2018, quan­do o saram­po voltou a causar sur­tos no país, a primeira dose da trí­plice viral havia chega­do a 92% das cri­anças, per­to da meta de 95%. A segun­da dose, porém, teve uma cober­tu­ra de ape­nas 76%.

A taxa de pro­teção era ain­da pior na região amazôni­ca, jus­ta­mente onde o sur­to começou. No Amapá, ape­nas 64% rece­ber­am a segun­da dose naque­le ano, e, no Pará, o per­centu­al foi de 60%.

Brasília (DF) 31/08/2023 - Presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Mônica Levi.Foto: Divulgação/SBIM
Repro­dução: Môni­ca Levi diz que é pre­ciso haver homo­genei­dade na cober­tu­ra vaci­nal nas várias regiões do país — Divulgação/SBIM

A pres­i­dente da Sociedade Brasileira de Imu­niza­ções, Môni­ca Levi, reforça que, além de atin­gir a meta, é pre­ciso garan­tir que o resul­ta­do seja homogê­neo. Isto é: que todos os esta­dos e municí­pios ao menos se aprox­imem do per­centu­al dese­ja­do.

“A gente não pode ter nichos local­iza­dos de não vaci­na­dos. Se não se põe tudo a perder. Tem que ter homo­genei­dade. Todos os locais têm que ter cober­tu­ra min­i­ma­mente alta para que o país fique pro­te­gi­do”, argu­men­ta ela, que expli­ca que o vírus con­segue furar o blo­queio e entrar se um grupo especí­fi­co não estiv­er pro­te­gi­do. “Não é uma pre­ocu­pação só com equidade social. É claro que isso é impor­tante. Mas, se você largar um grupo para trás, a doença vai traz­er riscos para todo mun­do.”

Ain­da em 2019, o prob­le­ma da fal­ta de homo­genei­dade havia sido diag­nos­ti­ca­do pelo Min­istério da Saúde, que apon­tou que, dos 5.570 municí­pios brasileiros, 2.751 (49%) não atin­gi­ram a meta de cober­tu­ra vaci­nal con­tra o saram­po em 2018. No Pará, 83,3% dos municí­pios não havi­am atingi­do a meta; em Roraima, 73,3%; e no Ama­zonas, 50%.

Surto

O sur­to de saram­po que teve iní­cio na região amazôni­ca rap­i­da­mente se espal­hou entre diver­sos esta­dos. Em ape­nas um ano, o Brasil saltou de zero caso para mais de 10 mil, ain­da con­cen­tra­dos prin­ci­pal­mente no Ama­zonas, Roraima e Pará. No ano seguinte, 2019, o número de casos dobrou, para 20 mil. Naque­le ano, São Paulo pas­sou a ser o cen­tro do sur­to de saram­po.

Nos anos seguintes, o sur­to perdeu força, mas a doença con­tin­ua a cir­cu­lar no país. Em 2020, foram con­fir­ma­dos 8.448 casos e, em 2021, 676. Ape­sar dis­so, o Obser­vatório de Saúde na Infân­cia (Obser­va Infân­cia), pro­je­to da Fiocruz e da Fac­ul­dade de Med­i­c­i­na de Petrópo­lis (FMP/UNIFASE), mostra que a doença cau­sou em 2020 o maior número de víti­mas infan­tis no Brasil em quase duas décadas: foram dez mortes abaixo dos 5 anos. Entre 2018 e 2021, o número de mortes nes­sa faixa etária chegou a 26.

A coor­de­nado­ra do Obser­va Infân­cia, Patrí­cia Boc­col­i­ni, ressalta que haver uma úni­ca morte por uma doença que já pode ser pre­veni­da há tan­to tem­po já é uma tragé­dia.

“Mortes infan­tis por saram­po podem ser evi­tadas com uma estraté­gia sim­ples e con­sol­i­da­da no SUS: a vaci­nação”, apon­ta.

“Isso tem que ser sem­pre lem­bra­do para a pop­u­lação, porque essa nova ger­ação que tem fil­hos ago­ra é uma ger­ação que não viu toda a gravi­dade do saram­po, da pólio e de out­ras doenças que já foram con­tro­ladas pelas cober­turas vaci­nais. Elas não têm essa per­cepção de risco, porque a grande maio­r­ia foi vaci­na­da. Não vemos mais pes­soas com seque­las nas ruas.”

Patrícia Boccolini é coordenadora do Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância/Fiocruz-Unifase). Foto: Arquivo Pessoal
Repro­dução: Para Patrí­cia Boc­col­i­ni, país cam­in­ha para con­tro­lar nova­mente o saram­po — Arqui­vo pes­soal

A pesquisado­ra avalia que tudo indi­ca que o país cam­in­ha para con­tro­lar nova­mente o saram­po. Em 2022, foram 44 casos con­fir­ma­dos da doença, e, em 2023, ain­da não há novos reg­istros de diag­nós­ti­cos con­fir­ma­dos.

“A gente está no cam­in­ho e tudo indi­ca que hou­ve um con­t­role, porque não tive­mos nen­hum caso no ano de 2023. Porém, a gente con­tin­ua ain­da com baixas cober­turas vaci­nais, ape­sar de todos os esforços do novo gov­er­no e da nova min­is­tra. Isso é um sinal de aler­ta. Por mais que não este­ja cir­cu­lan­do, temos baixas cober­turas e isso é um ambi­ente propí­cio para um caso impor­ta­do que pos­sa chegar aqui. O saram­po é extrema­mente con­ta­gioso. Para a gente con­seguir o nos­so selo nova­mente de país livre do saram­po, temos que esper­ar um pouco mais para ver se a situ­ação vai se man­ter.”

Em entre­vista exclu­si­va à Rádio Nacional, a min­is­tra da Saúde, Nísia Trindade, expli­cou que os sur­tos de saram­po que o Brasil voltou a reg­is­trar foram con­tro­la­dos, mas que o risco per­manece enquan­to a imu­niza­ção não for recu­per­a­da.

“Para a redução do risco em relação ao saram­po nós temos que alcançar a cober­tu­ra que o país já teve, de mais de 90%. O que temos que faz­er nesse momen­to é levar a vaci­na para a pop­u­lação e sen­si­bi­lizar para que ela seja apli­ca­da.”

arte tríplice viral

*Colaborou Tâmara Freire, repórter da Rádio Nacional

Edição: Juliana Andrade

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