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Seis anos após tragédia de Mariana, voz de atingidos chega ao CNJ

Repro­dução: © Tânia Rêgo/Agência Brasil

Novo acordo de reparação é mediado pelo conselho


Pub­li­ca­do em 05/11/2021 — 06:30 Por Léo Rodrigues — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

Seis anos após a tragé­dia de Mar­i­ana (MG), atingi­dos estão ten­do a opor­tu­nidade de expor suas exper­iên­cias e descon­tenta­men­tos com a reparação nas altas esferas do Poder Judi­ciário. O espaço foi garan­ti­do no âmbito do proces­so de nego­ci­ação de um novo acor­do de reparação que está sendo medi­a­do pelo Con­sel­ho Nacional de Justiça (CNJ). No mês pas­sa­do, duas audiên­cias públi­cas foram real­izadas em for­ma­to vir­tu­al. Cada uma delas durou cer­ca de seis horas, e cada atingi­do pôde falar por cin­co min­u­tos. Mais um encon­tro está pre­vis­to para 1º de dezem­bro.

A tragé­dia de Mar­i­ana ocor­reu no dia 5 novem­bro de 2015, quan­do o rompi­men­to de uma bar­ragem da min­er­ado­ra Samar­co cau­sou a morte de 19 pes­soas e ger­ou impactos em dezenas de cidades mineiras e capix­abas situ­adas na Bacia do Rio Doce. Em março de 2016, foi fir­ma­do o Ter­mo de Transação e Ajus­ta­men­to de Con­du­ta (TTAC) que esta­b­ele­ceu os 42 pro­gra­mas atual­mente em anda­men­to. O acor­do foi fir­ma­do entre a Samar­co, suas acionistas Vale e BHP Bil­li­ton, a União e os gov­er­nos de Minas Gerais e do Espíri­to San­to. Para admin­is­trar as medi­das pre­vis­tas e custeadas pelas min­er­ado­ras foi cri­a­da a Fun­dação Ren­o­va.

A repactu­ação desse acor­do ocorre em meio a um cenário com­plexo do proces­so reparatório. Segun­do o CNJ, cer­ca de 85 mil proces­sos rela­ciona­dos à tragé­dia trami­tam na Justiça brasileira. O Min­istério Públi­co Fed­er­al (MPF), o Min­istério Públi­co de Minas Gerais (MPMG) e o Min­istério Públi­co do Espíri­to San­to (MPES), que não par­tic­i­param da nego­ci­ação do TTAC, con­sid­er­am que a Fun­dação Ren­o­va não tem a autono­mia necessária diante das min­er­ado­ras e não con­seguiu apre­sen­tar os resul­ta­dos esper­a­dos após seis anos. As três enti­dades, além das defen­so­rias públi­cas da União e dos dois esta­dos, estão envolvi­das na repactu­ação.

O procu­rador-ger­al de Justiça do MPMG, Jar­bas Soares Júnior, está otimista com um acor­do, pois avalia que as próprias min­er­ado­ras têm inter­esse em chegar a um ter­mo que tra­ga mais segu­rança jurídi­ca. Ele cita dois dos prin­ci­pais gar­ga­los do proces­so ind­eniza­tório: o reassen­ta­men­to e as ind­eniza­ções. “Os atingi­dos estão até hoje sem suas mora­dias, o que é um dire­ito ele­men­tar bási­co do cidadão. As ind­eniza­ções estarão no coração dessa repactu­ação”.

Nas audiên­cia públi­cas já real­izadas, os atingi­dos se queixaram de diver­sos prob­le­mas como a con­t­a­m­i­nação da água, a inefi­ciên­cia dos pro­gra­mas de reparação e a fal­ta de asses­so­rias téc­ni­cas, dire­ito que foi con­quis­ta­do judi­cial­mente mas que não foi efe­ti­va­do em muitos municí­pios. “O índice de anal­fa­betismo na área de pro­dução rur­al é alto. É muito difí­cil lidar com tudo isso. A asses­so­ria téc­ni­ca há muito tem­po foi escol­hi­da, mas não vem a cam­po por fal­ta de lib­er­ação”, diz Maria Célia Albi­no de Andrade, pro­du­to­ra rur­al e morado­ra de Con­sel­heiro Pena (MG).

Ape­sar de ressaltarem a importân­cia do espaço, muitos deles destacaram nas audiên­cias públi­cas que esper­am par­tic­i­pação nas decisões. “O atingi­do e a atingi­da pre­cisa estar na mesa de nego­ci­ação. Pre­cisa ter poder de decisão jun­to aos órgãos com­pe­tentes que já estão na mesa”, disse Rômu­lo Araújo, morador de São Mateus (ES). “Só reunião online não é par­tic­i­pação”, acres­cen­ta Simone Sil­va, que inte­gra a comis­são de atingi­dos de Bar­ra Lon­ga (MG).

O crono­gra­ma da medi­ação pre­vê ativi­dades até fevereiro do próx­i­mo ano. A expec­ta­ti­va do MPF e do MPMG é que pos­sa ser obti­do um acor­do mais próx­i­mo ao que foi nego­ci­a­do para a tragé­dia de Bru­mad­in­ho, sem o envolvi­men­to de uma enti­dade como a Fun­dação Ren­o­va. As ações foram divi­di­das: a respon­s­abil­i­dade de exe­cução ficou em parte com o gov­er­no estad­ual, os municí­pios e a min­er­ado­ra Vale, respon­sáv­el pela bar­ragem que se rompeu cau­san­do 270 mortes em janeiro de 2019. Tam­bém foram pre­vis­tas medi­das que ficaram a car­go da decisão dos atingi­dos jun­to às insti­tu­ições de Justiça. O acor­do de Bru­mad­in­ho foi fecha­do em R$ 37,68 bil­hões.

Jar­bas Soares Júnior vê os dois casos se influ­en­cian­do. “O que acon­te­ceu em Mar­i­ana inspirou Bru­mad­in­ho, para que não fos­sem cometi­dos os mes­mos erros. E ago­ra o acor­do de Bru­mad­in­ho está inspi­ran­do a repactu­ação de Mar­i­ana”, diz o procu­rador-ger­al de Justiça do MPMG.

Para o MPF, a exten­são dos danos na bacia do Rio Doce foram supe­ri­ores. Sua refer­ên­cia na nego­ci­ação de repactu­ação é uma ação judi­cial de R$ 155 bil­hões que moveu con­tra as três min­er­ado­ras em 2016. A Fun­dação Ren­o­va afir­ma já ter gas­to, até o final de setem­bro, cer­ca de R$ 16,8 bil­hões na reparação. A enti­dade tra­bal­ha com um hor­i­zonte de atu­ação até 2030 e pre­vê que o cus­to total da reparação chegará a quase R$ 29 bil­hões. “Esse é o val­or que temos hoje. É um val­or que vamos revisan­do peri­odica­mente para incor­po­rar novas infor­mações, novas decisões judi­ci­ais”, diz o pres­i­dente da Fun­dação Ren­o­va, André de Fre­itas.

Reassentamento

As duas comu­nidades situ­adas na zona rur­al de Mar­i­ana que foram dev­as­tadas — Ben­to Rodrigues e Para­catu — ain­da estão sendo recon­struí­das. Já são seis anos que os atingi­dos vivem em casas alu­gadas pela Fun­dação Ren­o­va no cen­tro de Mar­i­ana ou em cidades viz­in­has, como Bar­ra Lon­ga e Ponte Nova. Pelo crono­gra­ma orig­i­nal da recon­strução, as casas dev­e­ri­am ter sido entregues em 2018 e 2019. Uma mul­ta pelos atra­sos está sendo cobra­da judi­cial­mente pelo MPMG.

Para o pres­i­dente da Fun­dação Ren­o­va, a situ­ação decorre da com­plex­i­dade do proces­so. Segun­do ele, empreendi­men­tos do padrão que está sendo con­struí­do lev­am entre cin­co a sete anos para serem entregues. “O que foi feito foi um proces­so inédi­to com alta par­tic­i­pação: escol­ha do ter­reno pela comu­nidade, seleção do pro­je­to urbanís­ti­co. Hou­ve mudanças no pro­je­to depois de licen­ci­a­do, teve a pan­demia, então há uma com­plex­i­dade enorme. Obra mes­mo começamos em 2019. Antes foi preparação”, diz André de Fre­itas.

Ele lamen­tou os impactos da pan­demia. “Parou a obra, voltou grada­ti­va­mente. Devíamos ter 5 mil pes­soas tra­bal­han­do lá no final do ano pas­sa­do. Tín­hamos 1,7 mil”. De acor­do com a Fun­dação Ren­o­va, em Ben­to Rodrigues há 10 casas prontas e mais 87 em con­strução. Cer­ca de 65 devem estar con­cluí­das ain­da este ano. Os desen­hos são feitos por arquite­tos con­trata­dos pela enti­dade, e as decisões são tomadas jun­ta­mente com as víti­mas.

“Para poder­mos começar a con­stru­ir uma casa, são necessários o pro­je­to exec­u­ti­vo e a lib­er­ação do alvará. Há casos em que a família ain­da está definin­do o pro­je­to. Todos os que já estão lib­er­a­dos a gente entre­ga até o final do ano que vem. Mas talvez fique um pequeno sal­do, uma casa aqui, out­ra ali, que a gente con­tin­uará con­stru­in­do”, acres­cen­ta André.

Indenizações

Out­ro prob­le­ma envolve as ind­eniza­ções. Em jul­ho do ano pas­sa­do, a Ram­boll, uma das con­sul­to­rias exter­nas inde­pen­dentes que asses­so­ram a atu­ação do MPF, indi­cou que ape­nas 34% das famílias cadastradas em toda a bacia havi­am rece­bido algum val­or ind­eniza­tório. Esse cenário vem mudan­do des­de que foi cri­a­do o novo sis­tema ind­eniza­tório sim­pli­fi­ca­do, a par­tir de uma série de sen­tenças pro­feri­das pelo juiz fed­er­al Mário de Paula Fran­co Júnior. As primeiras delas, em setem­bro do ano pas­sa­do, ben­e­fi­cia­ram os municí­pios de Naque (MG) e Baixo Guan­du (ES). A par­tir de então, mil­hares de atingi­dos de out­ros municí­pios solic­i­taram adesão e foram aten­di­dos.

“Esta­mos com quase 46 mil casos com ter­mos aceitos no sis­tema sim­pli­fi­ca­do. Con­sideran­do uma média de R$ 100 mil por pes­soa, são cer­ca de R$ 4,5 bil­hões. Nem todos foram pagos ain­da. São ter­mos aceitos, mas uma parte deles ain­da pre­cisa ser homolo­ga­da. Cer­ca de 37 mil já foram pagos. É uma entre­ga maior do que a gente imag­i­na­va para este ano. O nív­el de adesão é um dos prin­ci­pais indi­cadores da atra­tivi­dade do sis­tema. A média é de 93%”, diz o pres­i­dente da Fun­dação Ren­o­va.

Entre os ind­eniza­dos estão tra­bal­hadores infor­mais, que até então não havi­am sequer sido recon­heci­dos no proces­so de reparação, como revende­dores de pesca­do, com­er­ciantes, artesãos, agricul­tores, car­ro­ceiros, areeiros, ilheiros e lavadeiras. Eles devem rece­ber quan­tias que vari­am entre R$ 71 mil e R$ 161,3 mil. São val­ores ref­er­entes a danos mate­ri­ais e morais e lucros ces­santes, isto é, os gan­hos finan­ceiros que o tra­bal­hador deixou de obter. Tam­bém foram arbi­tra­dos val­ores entre R$ 17,4 mil e R$ 54 mil a moradores que pescav­am ou plan­tavam para sub­sistên­cia.

As sen­tenças fixaram ain­da val­ores para hotéis, pou­sadas, bares e restau­rantes infor­mais, além de donos ou trip­u­lantes de embar­cações empre­gadas na pesca profis­sion­al. A Fun­dação Ren­o­va avalia que as decisões judi­ci­ais via­bi­lizaram o pro­gres­so das ind­eniza­ções, ao ampli­ar o leque de doc­u­men­tos que podem ser apre­sen­ta­dos, e tornar mais sim­pli­fi­ca­do o recon­hec­i­men­to dos atingi­dos de difí­cil com­pro­vação.

O MPF, no entan­to, con­sid­era alguns val­ores baixos e vê irreg­u­lar­i­dades na implan­tação do sis­tema. Em uma ação civ­il públi­ca foi denun­ci­a­do o recon­hec­i­men­to de comis­sões de atingi­dos ilegí­ti­mas. Tam­bém foi lev­an­ta­da sus­pei­ta de lide sim­u­la­da, que ocorre quan­do o proces­so é aber­to após acor­do prévio entre advo­ga­dos de ambas as partes. No entan­to, em decisões pre­lim­inares, a Justiça man­teve o sis­tema.

Percepções

Na primeira audiên­cia públi­ca, a morado­ra de Bar­ra Lon­ga, Cris­tiane Ribeiro Mar­tins, endos­sou a denún­cia do MPF. “É uma comis­são que nun­ca exis­tiu”, disse ela sobre a enti­dade que solic­i­tou a inclusão do municí­pio no sis­tema sim­pli­fi­ca­do. Entre os atingi­dos, há difer­entes per­cepções sobre o sis­tema ind­eniza­tório sim­pli­fi­ca­do. “A lama chegou a 400 met­ros da min­ha pro­priedade e eu não fui con­sid­er­a­do atingi­do. Foi uma luz no fim do túnel de, quem sabe, rece­ber algu­ma coisa”, disse Alexan­der da Cos­ta Calder­aro, pro­du­tor rur­al em Mar­i­ana.

Creusa Fer­nan­des Almei­da, morado­ra do dis­tri­to de Revés de Belém, em Bom Jesus do Gal­ho (MG), vê uma pressão da Fun­dação Ren­o­va e tam­bém dos advo­ga­dos par­tic­u­lares para que as pes­soas façam a adesão. “Eu aderi porque era con­sid­er­a­da um caso de difí­cil com­pro­vação. E hoje vejo que não era de difí­cil com­pro­vação. Não tive prob­le­ma nen­hum para entrar e rap­i­da­mente me pagaram”.

Uma das prin­ci­pais queixas diz respeito à exigên­cia de assi­natu­ra do ter­mo de quitação ger­al: por meio dele, o atingi­do con­cor­da em não faz­er novas reivin­di­cações ind­eniza­tórias. Out­ra críti­ca é sobre a inter­rupção do paga­men­to do auxílio emer­gen­cial, con­ce­di­do aos tra­bal­hadores que perder­am sua fonte de ren­da. O repasse, feito men­salmente, não se con­funde com a ind­eniza­ção, mas é inter­rompi­do uma vez que o atingi­do adere ao sis­tema sim­pli­fi­ca­do e recebe os val­ores.

“Por que dar quitação ger­al? Por que esse sis­tema tira do atingi­do o dire­ito de ter seu auxílio emer­gen­cial, seu lucro ces­sante no final do ano? Por que o juiz e as novas comis­sões defen­d­em isso e jogam esse prob­le­ma pra frente? Daqui a pouco aca­ba o din­heiro e os prob­le­mas vão con­tin­uar, porque o peixe vai estar con­t­a­m­i­na­do. A pesca sofreu um impacto que nós ain­da não con­seguimos medir”, diz o capix­a­ba Rômu­lo Araújo.

O agricul­tor José Pavu­na, de Tumir­itin­ga (MG), não achou o sis­tema ind­eniza­tório atraente. “Eu irri­go cin­co hectares. Tin­ha 4,5 mil pés de café. Per­di tudo. Toda min­ha vida vem desse pedac­in­ho de ter­ra. Eu não aderi. Min­ha per­da é maior do que o val­or que está lá”, con­tou.

Edição: Graça Adju­to

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