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Servidão é filme sobre resistência, diz diretor de documentário

Repro­dução: © Rey­nal­do Zangrandi/Divulgação

Filme de Renato Barbieri estreia hoje nos cinemas


Pub­li­ca­do em 25/01/2024 — 08:00 Por Elaine Patri­cia Cruz – Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo
Atu­al­iza­do em 25/01/2024 — 08:17

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“Abolição já. A out­ra não valeu”. É com essa frase, estam­pa­da nos car­tazes que dis­tribuí­dos para salas de cin­e­ma de todo o Brasil, que é apre­sen­ta­do o novo filme de Rena­to Bar­bi­eri, o doc­u­men­tário Servidão.

Servidão é uma peça de resistên­cia que fize­mos para for­t­ale­cer o movi­men­to abo­l­i­cionista brasileiro, con­tra a escravidão con­tem­porânea, porque o cin­e­ma tem uma função social impor­tante, de mobi­lizar, de enga­jar. E a gente reuniu um grupo incrív­el de abo­l­i­cionistas, home­ns e mul­heres, ver­dadeiros heróis e heroí­nas, porque muitos até arriscam a vida, out­ros per­dem a vida. O filme tra­ta dis­so, muitos tombaram defend­en­do a liber­dade, defend­en­do a Con­sti­tu­ição e defend­en­do os dire­itos humanos”, disse o cineas­ta Rena­to Bar­bi­eri, em entre­vista à Agên­cia Brasil.

Com nar­ração da artista Negra Li, Servidão dis­cute o quan­to as mar­cas da escravidão con­tin­u­am a per­me­ar as relações tra­bal­his­tas no mun­do atu­al, emb­o­ra sejam con­sid­er­adas crime pelo Códi­go Penal Brasileiro. Servidão é um aler­ta de que a Lei Áurea até pode ter aboli­do o dire­ito de pro­priedade e de comér­cio dos escrav­iza­dos, mas não trans­for­mou as relações de tra­bal­ho, já que ain­da exis­tem pes­soas enfrentan­do situ­ações em que são forçadas a tra­bal­hos ou jor­nadas exaus­ti­vas ou a condições degradantes e sem liber­dade.

“Mui­ta gente pen­sa que a escravidão acabou em 13 de maio de 1888. O que mui­ta gente não sabe é que a escravidão, em sua for­ma con­tem­porânea, começou no dia seguinte, 14 de maio de 1888. Ou seja, o Brasil nun­ca teve um dia sequer como nação livre.

Para Bar­bi­eri, a escravidão mod­er­na tem uma out­ra for­ma, difer­ente daque­la clás­si­ca que tin­ha o tron­co e as cor­rentes de fer­ro. “As cor­rentes hoje são muito men­tais, de você desval­orizar e rebaixar a pes­soa para dom­iná-la psi­co­logi­ca­mente, cor­po­ral­mente e psiquica­mente, e com estraté­gias ter­ríveis de enganação, de ofer­e­cer salário bom, emprego bom e, na ver­dade, quan­do chega no fim do mês, o tra­bal­hador fica deven­do. Isso é trági­co, isso é covarde, isso é cru­el e está entran­hado na sociedade e no Esta­do brasileiros e, de algu­ma maneira, está entran­hado na lei tam­bém. Temos que faz­er uma refun­dação desse país, porque a gente tem cin­co sécu­los de escravidão e uma men­tal­i­dade escrav­agista muito forte ain­da”, acres­cen­tou.

Cenas do filme Servidão. Foto: Reynaldo Zangrandi/Divulgação
Repro­dução: Para Bar­bi­eri, a escravidão mod­er­na tem for­ma difer­ente daque­la clás­si­ca, no tron­co e com cor­rentes de fer­ro. Foto: Rey­nal­do Zangrandi/Divulgação

Além de ouvir jor­nal­is­tas, his­to­ri­adores, audi­tores-fis­cais e pes­soas que lutam con­tra a explo­ração da força de tra­bal­ho, o lon­ga tam­bém acom­pan­hou alguns tra­bal­hadores rurais escrav­iza­dos em frentes de des­mata­men­to na Amazô­nia brasileira. E com isso, ele con­seguiu demon­strar que, na maior parte dess­es casos, as pes­soas que são sub­meti­das a situ­ações de explo­ração têm baixa esco­lar­i­dade e estão em situ­ação de extrema pobreza. Situ­ação que não ocorre somente no cam­po, mas tam­bém na con­strução civ­il, nas con­fecções e nos quar­t­in­hos de empre­ga­da.

Um dos per­son­agens do filme é o maran­hense Mari­nal­do Soares San­tos, de 52 anos. Mari­nal­do começou a tra­bal­har na roça, jun­to com os pais, aos dez anos de idade. “Somos de uma família bem pobre e o começo da nos­sa infân­cia foi tra­bal­han­do na roça com nos­sos pais. Não tín­hamos ren­da nen­hu­ma. Min­ha mãe era que­bradeira de coco e meu pai tra­bal­ha­va na roça. E o que a gente apren­deu foi esse serviço de tra­bal­har na roça, plan­tar e col­her”, disse à reportagem.

Por causa dis­so, Mari­nal­do só con­seguiu ir para a esco­la mais tarde, aos 16 anos. Mas por pouco tem­po. Com a mes­ma idade ele começou a tra­bal­har em fazen­das da região. “Eu ain­da tin­ha 16 anos na primeira vez que eu saí para tra­bal­har, na região do Pará. Tra­bal­hei e gan­hei um din­heir­in­ho bacana. Nesse primeiro serviço, tra­bal­hei e não fui engana­do, então aqui­lo ali me deu a ambição para sair mais out­ras vezes. Aí, nas out­ras vezes eu acabei que­bran­do a cara.”

Com pou­ca esco­lar­i­dade e pre­cisan­do de din­heiro, Mari­nal­do acabou sendo víti­ma de tra­bal­ho escra­vo. Por 13 vezes. “Em bus­ca de recur­so pra min­ha família, acabei sendo escrav­iza­do a maior parte das vezes em que eu tra­bal­hei. Eu tin­ha meu dire­ito nega­do. Na ver­dade, eu nem con­hecia meu dire­ito. Aqui­lo que eu esta­va pas­san­do, acha­va que esta­va pas­san­do por causa da min­ha pre­cisão, porque eu era pobre”.

Por muitas vezes, Mari­nal­do tra­bal­hou sem rece­ber din­heiro. “A gente tra­bal­ha­va com fome às vezes. Na maio­r­ia das vezes, quan­do dava três horas, a gente esta­va fra­co de fome. Tam­bém não tin­ha ‘dormi­da’ ade­qua­da. Dormia debaixo de pé de árvore, debaixo de bar­ra­cos de lona. Tin­ha vezes que chovia e a gente só podia dormir depois que a chu­va pas­sa­va: se chovesse a noite toda, a gente tin­ha que ficar segu­ran­do a lona para não se mol­har. Isso era uma coisa muito com­pli­ca­da para a gente, mas a gente não tin­ha como reivin­dicar o nos­so dire­ito. Tra­bal­ha­va das seis às seis, sem ter des­can­so nen­hum, sába­do, domin­go. A água que a gente bebia era a mes­ma água que o ani­mal bebia tam­bém. Era uma coisa muito triste que só da gente con­tar e lem­brar o que a gente pas­sou é sofr­er duas vezes”.

A situ­ação só foi super­a­da quan­do ele con­heceu seus dire­itos. Na ver­dade, não só quan­do con­heceu seus dire­itos mas quan­do lhe foi ofer­e­ci­da uma opor­tu­nidade de con­seguir deixar aque­la situ­ação. Com isso, ele acabou viran­do um agente de mudança. Hoje ele tra­bal­ha como vigia em uma esco­la e desem­pen­ha um papel de agente de cidada­nia no Cen­tro de Defe­sa da Vida e dos Dire­itos Humanos Car­men Bas­carán, em Açailân­dia (MA), aju­dan­do out­ras pes­soas a lutarem por seus dire­itos. “Hoje eu vivo lutan­do para que out­ras pes­soas não passem pelo que a gente já pas­sou porque ser escrav­iza­do é muito triste. Infe­liz­mente eu já pas­sei [por isso], então eu con­to a min­ha história. Não ten­ho ver­gonha e nem medo de con­tar porque se a gente calar a boca esse é mais um meio para ter facil­i­dade para out­ro ser escrav­iza­do”, afir­mou.

Mudanças

Mari­nal­do atual­mente faz rodas de con­ver­sa para dar dicas para que as pes­soas não sejam sub­meti­das a essa for­ma de tra­bal­ho escrav­iza­do. Entre as dicas que ele dá, estão a neces­si­dade da pes­soa sem­pre comu­nicar à família o endereço de seu tra­bal­ho e tam­bém bus­car mais infor­mações sobre a empre­sa ou pes­soa para quem vai tra­bal­har. Tam­bém é impor­tante faz­er um con­tra­to de tra­bal­ho para esta­b­ele­cer as funções e salário. “E qual­quer coisa que der erra­do, eles não devem se deses­per­ar: é só procu­rar faz­er denún­cia, porque nós somos humanos. Então, se somos humanos, nos­sos dire­itos são iguais e temos que reivin­dicar nos­sos dire­itos”, reforçou.

Cenas do filme Servidão. Foto: Reynaldo Zangrandi/Divulgação
Repro­dução: Doc­u­men­tário estreia no Dia Nacional de Com­bate ao Tra­bal­ho Escra­vo. Foto: Rey­nal­do Zangrandi/Divulgação

Ele tam­bém defende que o gov­er­no brasileiro se empen­he na solução do prob­le­ma, não só mel­ho­ran­do a fis­cal­iza­ção, mas disponi­bi­lizan­do cur­sos profis­sion­al­izantes para as comu­nidades mais car­entes. Com isso, disse, as famílias pode­ri­am ter sua própria ren­da e não neces­si­tari­am se deslo­car para den­tro das matas e se sub­me­ter a condições degradantes. Mari­nal­do diz ain­da que o gov­er­no pre­cisa ofer­e­cer condições para que a pes­soa saia dessa situ­ação. “Pre­cisa ofer­e­cer um meio da pes­soa ter um lucro, um gan­ho. Porque senão ela vai voltar a ser explo­ra­da”, desta­cou.

Já Bar­bi­eri defende que o com­bate à escravidão mod­er­na só será pos­sív­el com a par­tic­i­pação de toda a sociedade. “Acho que está na hora da nos­sa ger­ação, dos viventes, assumir essa mis­são para si e começar a escr­ev­er um novo livro do Brasil. Não é nem escr­ev­er uma nova pági­na, é escr­ev­er um novo livro, um livro de uma nação livre.”

Cenas do filme Servidão. Foto: Reynaldo Zangrandi/Divulgação
Repro­dução: Cenas do filme Servidão. Foto: Rey­nal­do Zangrandi/Divulgação — Rey­nal­do Zangrandi/Divulgação

Filme

O filme, que chega hoje (25) aos cin­e­mas, mar­ca o Dia Nacional de Com­bate ao Tra­bal­ho Escra­vo, que com­ple­ta 20 anos no dia 28 de janeiro. A data foi insti­tuí­da em hom­e­nagem aos audi­tores fis­cais do tra­bal­ho Eratóstenes de Almei­da Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nel­son José da Sil­va e ao motorista Aíl­ton Pereira de Oliveira. Eles foram mor­tos em 28 de janeiro de 2004 quan­do inves­ti­gavam denún­cias de tra­bal­ho escra­vo em fazen­das na cidade mineira de Unaí, no episó­dio que ficou con­heci­do como a Chaci­na de Unaí.

Edição: Maria Clau­dia

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