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Transexuais se mobilizam para superar barreiras e retificar documentos

 

Repro­dução: © Divulgação/Rai do Vale/TransVida

Desde 2018 o Brasil permite que pessoas trans alterem o nome


Pub­li­ca­do em 29/01/2022 — 12:16 Por Viní­cius Lis­boa – Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

Des­de 2018, pes­soas tran­sex­u­ais podem bus­car cartórios de reg­istro civ­il no país para cor­ri­gir seu primeiro nome e seu gênero na cer­tidão de nasci­men­to ou casa­men­to e, a par­tir daí, mod­i­ficar os out­ros doc­u­men­tos pes­soais.

Quase qua­tro anos após essa con­quista, no entan­to, ativis­tas tran­sex­u­ais e defen­sores dos dire­itos humanos ouvi­dos pela Agên­cia Brasil para o Dia da Vis­i­bil­i­dade Trans, cel­e­bra­do hoje (29), apon­tam obstácu­los à efe­ti­vação desse dire­ito e se mobi­lizam para que a pop­u­lação ten­ha aces­so a doc­u­men­tos que respeit­em sua iden­ti­dade de gênero.

Para a pres­i­dente da Asso­ci­ação Nacional de Trav­es­tis e Tran­sex­u­ais (Antra), Keila Simp­son, as bar­reiras já começam nos cus­tos de obtenção das cer­tidões necessárias para realizar o pedi­do no cartório, que incluem gas­tos com o deslo­ca­men­to para ir aos órgãos solic­itá-las.

Super­a­da essa eta­pa, a reti­fi­cação do reg­istro civ­il no cartório tam­bém requer o paga­men­to de taxas que vari­am de esta­do para esta­do. Keila expli­ca que a infor­mação de que é pos­sív­el solic­i­tar gra­tu­idade nem sem­pre chega à pop­u­lação.

“A buro­c­ra­cia exis­tente e a não gra­tu­idade são um grande empecil­ho. Estou falan­do de uma pop­u­lação que vive em sube­m­prego, não tem recur­sos muitas vezes, e que tem que pagar pelas cer­tidões. Para muitas pes­soas pode pare­cer val­ores irrisórios, mas para as pes­soas trans é sig­ni­fica­ti­vo e muitas não têm como pagar”.

Keila foi uma das ativis­tas trans que estiver­am no Con­gres­so Nacional, em 29 de janeiro de 2004, para um ato por respeito que foi con­sid­er­a­do históri­co e definiu a data do Dia Nacional da Vis­i­bil­i­dade Trans.

A pres­i­dente da Antra recomen­da que pes­soas trans que não saibam como pedir a cor­reção de seus doc­u­men­tos pro­curem defen­so­rias públi­cas e orga­ni­za­ções de defe­sas dos dire­itos humanos de sua região para bus­car ori­en­tações. Além dis­so, ela indi­ca que há guias disponíveis na inter­net, como no próprio site da asso­ci­ação.

“A pes­soa vai viven­do sem se iden­ti­ficar e pas­sa por difi­cul­dades, por vio­lações de dire­ito, por con­strang­i­men­to públi­co quan­do pre­cis­ar apre­sen­tar o doc­u­men­to. E ela vai con­tin­uar sofren­do essas vio­lên­cias que ela sofre porque tem uma buro­c­ra­cia nesse proces­so que pre­cisa ser ven­ci­da”, afir­ma Keila Simp­son.

Regras

A reti­fi­cação de nome e gênero nos cartórios segue as regras do Provi­men­to n.º 73, pub­li­ca­do em 2018 pelo Con­sel­ho Nacional de Justiça. Além de cer­tidão de nasci­men­to, RG, CPF, títu­lo de eleitor e out­ros doc­u­men­tos de iden­ti­fi­cação, são exigi­das cer­tidões da Justiça Eleitoral e da Justiça do Tra­bal­ho, cer­tidões dos dis­tribuidores cív­el e crim­i­nal do local de residên­cia, cer­tidão de exe­cução crim­i­nal, cer­tidão dos tabe­lion­atos de protestos e cer­tidão da Justiça Mil­i­tar, se for o caso.

Reunidos todos ess­es doc­u­men­tos, a pes­soa trans pode ir ao cartório solic­i­tar que seja cor­rigi­do o primeiro nome e/ou o gênero em sua cer­tidão de nasci­men­to. Caso seja casa­da, a pes­soa pre­cisa do con­sen­ti­men­to do côn­juge para alter­ar a cer­tidão de casa­men­to.

O provi­men­to do CNJ só se tornou pos­sív­el depois que o Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF) recon­heceu, em 2018, o dire­ito de as pes­soas trans cor­ri­girem seus doc­u­men­tos em cartório sem com­pro­var qual­quer tipo de cirur­gia de redes­ig­nação sex­u­al.

Espera e humilhação

Pres­i­dente do Grupo pela Vid­da, Maria Eduar­da Aguiar lem­bra que a reti­fi­cação de seus doc­u­men­tos, obti­da antes da decisão do STF e do provi­men­to do CNJ, pre­cisou ser real­iza­da por via judi­cial.

“Eu só con­segui a reti­fi­cação civ­il depois  do lau­do de um psiquia­tra. Teve que uma out­ra pes­soa diz­er quem eu sou. Hoje, demo­ra 90 dias, mas o meu proces­so demor­ou três anos. E hou­ve pes­soas que esper­aram mais, até seis anos”, con­ta ela, que lem­bra que o proces­so exi­gia a com­pro­vação da cirur­gia de redes­ig­nação sex­u­al, de trata­men­tos hor­mon­ais e ain­da depen­dia da aprovação do juiz que fos­se respon­sáv­el pelo caso.

No tem­po de espera por seus doc­u­men­tos, Maria Eduar­da viveu situ­ações que clas­si­fi­ca como humil­hantes, em que era acu­sa­da de inven­tar um nome que não podia provar que era o seu.

“Só quem vive isso sabe o que é. É uma tor­tu­ra ter que, a toda hora, estar se expli­can­do. Você vai a um lugar e tem que explicar e pedir, pelo amor de Deus, para a pes­soa te tratar no nome social. Isso é humil­hante, não há dig­nidade nis­so. A reti­fi­cação dá cidada­nia à pes­soa, porque ela não pre­cisa ficar se expli­can­do, ela apre­sen­ta o doc­u­men­to e acabou”.

Como ativista e advo­ga­da, Maria Eduar­da decid­iu aju­dar out­ras pes­soas trans a obter a ade­quação de seus doc­u­men­tos e evi­tar ess­es con­strang­i­men­tos. O Grupo pela Vid­da real­i­zou um mutirão por meio do pro­je­to Trans­Vi­da, entre out­ubro e dezem­bro de 2021, para ori­en­tar pes­soas trans na obtenção das cer­tidões e no pedi­do de reti­fi­cação. Ao acom­pan­har ess­es casos, ela con­ta ter se depara­do com bar­reiras que vão além da buro­c­ra­cia.

“Vimos cartórios exigin­do doc­u­men­tos que não estão pre­vis­tos, ou colo­can­do em exigên­cia doc­u­men­tos que já foram apre­sen­ta­dos”, con­ta ela, que exem­pli­fi­ca com um caso em que o cartório exigiu cer­tidões tam­bém no nome social do solic­i­tante, o que não está pre­vis­to pelo CNJ.

A advo­ga­da rela­ta ain­da mais de um caso em que o requer­ente não rece­beu um pro­to­co­lo com­pro­van­do que real­i­zou o pedi­do. “A pes­soa aca­ba ten­do que refaz­er o pedi­do”.

O mutirão con­seguiu realizar 70 atendi­men­tos no Rio de Janeiro, e, em alguns casos, foi pre­ciso acom­pan­har o requer­ente no cartório para ques­tionar ess­es obstácu­los. “Min­ha luta é prestar um serviço para que a decisão do STF seja efe­ti­va­da. E a gente tem con­segui­do bons resul­ta­dos”.

Uma das histórias que Maria Eduar­da começou a acom­pan­har antes mes­mo do mutirão foi a de Thaísa Cor­reia, de 31 anos. A aux­il­iar de cabeleireira fez sua primeira ten­ta­ti­va de reti­fi­cação dos doc­u­men­tos em 2014, ain­da por via judi­cial, mas o proces­so cam­in­hou a pas­sos lentos até que ela decid­iu pedir aju­da à advo­ga­da, já em 2020.

Repro­dução: Thaísa Cor­reia lev­ou sete anos para con­seguir tro­car o nome em seus doc­u­men­tos — Arqui­vo Pessoal/ Thaísa Cor­reia

No caso de Thaísa, a prin­ci­pal difi­cul­dade foi faz­er com que o cartório de sua cidade natal, em Alagoas, envi­asse a cer­tidão para a reti­fi­cação no Rio de Janeiro. “Como eu não tin­ha din­heiro para ir lá, demor­ou muito. Se eu tivesse, acred­i­to que teria sido muito mais rápi­do”, con­ta ela, que só con­seguiu con­cluir o proces­so no fim de 2021.

“Muitas trans ain­da não têm nem ciên­cia de por onde começar. Tive aux­ilio da Duda [Maria Eduar­da] e de out­ra ami­ga que já fiz­er­am a reti­fi­cação, e por con­ta delas duas con­segui gal­gar isso. Para uma trans leiga é muito difí­cil”.

Nos quase sete anos em que viveu à espera de ter sua iden­ti­dade de gênero recon­heci­da nos doc­u­men­tos, Thaísa con­ta que perdeu opor­tu­nidades de tra­bal­ho e enfren­tou con­strang­i­men­tos ao bus­car serviços e apre­sen­tar doc­u­men­tos com o nome que rece­beu ao nascer.

“Mes­mo que eu man­dasse o cur­rícu­lo só com o nome de Thaísa, na hora de ser chama­da eu tin­ha que apre­sen­tar os doc­u­men­tos. Na primeira leitu­ra, era lida como mul­her, mas aí vin­ha o con­strang­i­men­to”, lem­bra ela. “Quan­do rece­bi a cer­tidão, o sen­ti­men­to foi de lib­er­tação, porque depois de tan­ta luta final­mente respeitaram min­ha iden­ti­dade. É um alívio”.

Mutirões

Diante das difi­cul­dades e cus­tos que o proces­so pode impor, cada vez mais mutirões têm ocor­ri­do para ofer­e­cer alter­na­ti­vas à pop­u­lação trans que não tem recur­sos para solic­i­tar a reti­fi­cação.

No Rio de Janeiro, a Defen­so­ria Públi­ca estad­ual, em parce­ria com a Justiça Itin­er­ante e a Fun­dação Oswal­do Cruz (Fiocruz), garan­tiu 96 reti­fi­cações de doc­u­men­tos em um úni­co dia, em 26 de novem­bro.

A coor­de­nado­ra do Núcleo de Defe­sa dos Dire­itos Homoafe­tivos e Diver­si­dade Sex­u­al (Nudi­ver­sis), defen­so­ra Mirela Assad, con­ta que os inter­es­sa­dos em obter a reti­fi­cação encon­tram um proces­so mais ágil no mutirão, porque a pre­sença da Justiça Itin­er­ante per­mite que, em um úni­co dia, os aten­di­dos já saiam com uma sen­tença que pode ser lev­a­da no cartório para alter­ação do nome e gênero.

“A difer­ença é que em um úni­co dia a pes­soa se qual­i­fi­ca. Ela não pre­cisa ficar baten­do per­na para con­seguir cer­tidões, o que para pes­soas pobres é uma coisa cus­tosa”, expli­ca a coor­de­nado­ra do Nudi­ver­sis

Esse mod­e­lo tam­bém per­mite o atendi­men­to a pes­soas não-binárias, que ain­da depen­dem de decisões judi­ci­ais para ter o gênero recon­heci­do em seus doc­u­men­tos. Entre as reti­fi­cações real­izadas na últi­ma edição do mutirão, 47 foram de pes­soas trans não-binárias, que saíram do mutirão com uma sen­tença judi­cial obri­g­an­do os cartórios a cor­ri­girem o gênero de seus reg­istros civis para não-binárie, com grafia em lin­guagem neu­tra.

“Quan­do fize­mos a petição e o juiz deu a sen­tença, isso foi a primeira vitória, porque saiu uma sen­tença por escrito de que o gênero dev­e­ria ser reti­fi­ca­do para não-binárie, em lin­guagem neu­tra. Ficamos apreen­sivos se os cartórios do reg­istro civ­il iri­am cumprir, mas para a nos­sa feli­ci­dade, eles estão cumprindo”, con­ta a defen­so­ra.

Um novo mutirão está mar­ca­do para o dia 18 de fevereiro, se o cenário epi­demi­ológi­co da covid-19 per­mi­tir, pon­dera a defen­so­ra. Mirela Assad con­ta que, por causa da pan­demia, optou-se por realizar o mutirão no cam­pus da Fiocruz em Man­guin­hos, em um local aber­to, onde o ônibus da Justiça Itin­er­ante pode esta­cionar.

Edição: Denise Griesinger

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