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UFF presta homenagem a aluno desaparecido durante a ditadura militar

Repro­dução: © Tânia Rêgo/Agência Brasil

Ivan Mota Dias foi preso 2 meses antes de se formar


Publicado em 06/04/2024 — 10:09 Por Mariana Tokarnia – Repórter da Agência Brasil — Rio de Janeiro

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Ivan Mota Dias é um dos mais de 200 desa­pare­ci­dos políti­cos durante a ditadu­ra mil­i­tar no Brasil, entre 1964 e 1985. Ele cur­sa­va história na Uni­ver­si­dade Fed­er­al Flu­mi­nense (UFF) e lutou con­tra a ditadu­ra na Van­guar­da Pop­u­lar Rev­olu­cionária (VPR).

Ivan tin­ha 28 anos quan­do foi pre­so, no dia 15 de maio de 1971, no Rio de Janeiro. Para quem o con­hecia de per­to, ele era sinôn­i­mo de doçu­ra, era ami­go de todos, gosta­va muito de estu­dar e, aci­ma de tudo, luta­va por justiça. A morte nun­ca chegou a ser con­fir­ma­da e a família nun­ca pôde se des­pedir de Ivan.

Esta sem­ana, 53 anos após o desa­parec­i­men­to, o estu­dante foi hom­e­nagea­do pela UFF, uni­ver­si­dade onde quase se for­mou. Fal­tavam ape­nas dois meses para rece­ber o diplo­ma quan­do ele teve a prisão dec­re­ta­da e pre­cisou entrar na clan­des­tinidade.

Edda Mas­trange­lo Dias, 83 anos, saiu de Brasília e foi ao cam­pus Gragoatá, da UFF, em Niterói, para rece­ber jun­to a out­ros mem­bros da família, a hom­e­nagem a Ivan. Pouco antes de entrar no auditório onde a cer­imô­nia acon­te­ceria, ela con­ver­sou com a Agên­cia Brasil. “Fui cun­ha­da e ami­ga. Prin­ci­pal­mente ami­ga do Ivan”, ressalta.

Niterói (RJ), 05/04/2024 - Edda Mastrangelo Dias, ex-cunhada e amiga de Ivan Mota Dias, desaparecido político da ditadura militar de 1964, na Universidade Federal Fluminense(UFF). Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Edda Mas­trange­lo Dias, ex-cun­ha­da e ami­ga de Ivan Mota Dias, desa­pare­ci­do políti­co da ditadu­ra mil­i­tar de 1964. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Ela foi a primeira esposa do irmão de Ivan, Zwinglio Mota Dias, que fale­ceu em 2021. “A gente não pode esque­cer. Nem perdão nem esquec­i­men­to. Eu sou urugua­ia, [e lá nós] dize­mos: ‘Ni perdón, ni olvi­do’. Todo o tem­po. Não dá para esque­cer. Quan­do a gente esquece, a gente perde a história”, afir­ma Edda.

Além de ter sido ami­ga de Ivan, ela e o mari­do abri­ram a casa aos mil­i­tantes, aju­daram como pud­er­am e chegaram a viv­er anos no exílio. Quan­do Zwinglio foi pre­so, foi ela que, grávi­da, o bus­cou de quar­tel em quar­tel no Rio de Janeiro.

“Era muito difí­cil, a gente tin­ha que estar se poli­cian­do o tem­po inteiro. Cuida­do, não fala, não, aqui não. A gente, para falar den­tro de casa, lig­a­va o rádio, lig­a­va a tele­visão bem alto, porque as pare­des tin­ham ouvi­dos. A gente fica­va meio neuróti­co tam­bém, né?”, diz. “Eu esta­va com 24 anos. A gente esta­va… tin­ha muito mais pique, né? Hoje eu não teria esse pique”.

Edda cur­sa­va teolo­gia em Buenos Aires quan­do con­heceu Zwinglio. Na época, ele tam­bém estu­da­va teolo­gia em Camp­inas, mas teve que deixar os estu­dos porque, segun­do Edda, a igre­ja pres­bi­te­ri­ana havia desli­ga­do os alunos con­sid­er­a­dos comu­nistas. Ele foi, então, con­tin­uar os estu­dos na cap­i­tal argenti­na. Eles se apaixonaram e Edda acabou vin­do com ele para o Brasil. Um mês depois do golpe mil­i­tar, em 1964, Edda con­heceu Ivan.

Clandestinidade

“Ivan era uma pes­soa mar­avil­hosa. Ivan era uma pes­soa suave, tremen­da­mente pací­fi­ca, a não ser quan­do se trata­va de injustiça ou ditadu­ra. Aí vira­va uma fera. Ele era muito ami­go de todo mun­do. Todo mun­do gosta­va dele. A gente sem­pre fala isso de quem mor­reu, mas é ver­dade. Todo mun­do gosta­va dele”, descreve.

Edda con­ta que Ivan entrou na mil­itân­cia ain­da ado­les­cente, em Pas­sa Qua­tro (MG), cidade onde nasceu e onde teve con­ta­to com o padeiro José Orlan­do, pai de Osval­do Orlan­do da Cos­ta, con­heci­do como Osvaldão, um dos prin­ci­pais inte­grantes da guer­ril­ha do Aragua­ia, e um padre argenti­no chama­do Domin­gos.

Ivan começou a estu­dar e a ler muito nes­sa época. Na ditadu­ra, ele pas­sou a inte­grar a VPR, grupo arma­do que lutou con­tra o regime mil­i­tar. Entre os prin­ci­pais inte­grantes esta­va Car­los Lamar­ca. O grupo foi respon­sáv­el, em 1970, pelo seque­stro do embaix­ador suíço Gio­van­ni Enri­co Buch­er, no Rio de Janeiro, que foi solto em tro­ca da lib­er­tação de 70 pre­sos políti­cos.

Emb­o­ra Edda não ten­ha par­tic­i­pa­do da luta arma­da porque, segun­do ela, tin­ha muito medo de ser tor­tu­ra­da, ela e o mari­do sem­pre aju­daram aque­les que estavam na lin­ha de frente pelo fim da ditadu­ra. Eles abri­ram a casa para os mil­i­tantes.

Na época, eles moravam na Pen­ha, bair­ro na zona norte do Rio e, pos­te­ri­or­mente, em San­ta Tere­sa, no cen­tro da cidade. Pela casa, pas­saram nomes muito con­heci­dos da resistên­cia, como Inês Eti­enne. Edda dizia que eles não falavam quem eram, para não cor­rerem nen­hum tipo de risco, caso o local fos­se descober­to. “Eu con­heci mui­ta gente, mas não pos­so diz­er nomes, porque não sei”.

Foi para a casa do irmão e da cun­ha­da, que Ivan fugiu depois da perseguição no con­gres­so da União Nacional dos Estu­dantes (UNE), em Ibiú­na, em 1968. Foi após este episó­dio que ele teve a prisão pre­ven­ti­va dec­re­ta­da e pre­cisou entrar na clan­des­tinidade.

“Ivan chegou em casa, eram três, qua­tro horas da man­hã. Tin­ha con­segui­do [fugir]. Fiz­er­am o cer­co de Ibiú­na, um monte de gente foi pre­sa e ele con­seguiu fugir, porque estavam procu­ran­do ele. Ele con­seguiu fugir e chegou em casa.”

Mes­mo na clan­des­tinidade, ele nun­ca deix­a­va de ver os pais e de man­dar notí­cias para a família. Segun­do Edda, os sogros rece­bi­am tele­fone­mas anôn­i­mos com instruções do horário em que acon­te­ceria o encon­tro. O local era com­bi­na­do pres­en­cial­mente, cada vez que se reu­ni­am. Em um dess­es encon­tros, ele con­heceu o primeiro sobrin­ho, que ain­da era bebê.

Um dos codi­nomes ado­ta­dos nes­sa época foi Coman­dante Cabanas. “Sabe por que? Era um car­ro­ceiro. Em Pas­sa Qua­tro não tin­ha prati­ca­mente car­ro. Só tin­ha car­roça e char­rete. E tin­ha um car­ro­ceiro vel­hin­ho, muito ami­go dele, que ele gosta­va muito, que era o Cabana. Então, foi uma hom­e­nagem ao Cabana”, con­ta Edda.

Quan­do entrou para a clan­des­tinidade, ele destru­iu todas as fotos e todos os vestí­gios dele. Foi ao den­tista e a médi­cos, bus­can­do destru­ir qual­quer reg­istro e pla­cas que con­tivessem o próprio mate­r­i­al genéti­co. Segun­do Edda, isso difi­cul­tou tam­bém o recon­hec­i­men­to de restos mor­tais. Hoje res­ta ape­nas uma foto, que é usa­da em arquiv­os e pub­li­cações ref­er­entes a Ivan.

“Inclu­sive a mãe e o pai ficaram sem nen­hu­ma foto dele, diz. E essa foto que ficou… E essa foto que ficou, foi algo tremen­do. Foi depois que o Ivan desa­pare­ceu. Em Pas­sa Qua­tro, uma pes­soa, subindo a escadaria da igre­ja viu uma fot­in­ha no chão. Uma foto pequenin­in­ha assim, de um grupo. Toda feia. E olhou bem no grupo, aí esta­va o Ivan. A gente lev­ou para um fotó­grafo ami­go que con­seguiu limpar e arru­mar. E essa é a úni­ca foto que a gente tem”, diz, Edda.

Prisão de Zwinglio

Edda con­ta que, um dia antes da prisão de Ivan, quan­do ele já esta­va sendo procu­ra­do, ela esta­va em casa quan­do bat­er­am à por­ta, às 6h. Era a polí­cia que esta­va em bus­ca de Zwinglio. Ela con­ta que Inês Eti­enne havia dormi­do na casa três dias antes e que deixara um par de sap­atos.

“Dois ou três dias antes, ain­da esta­va o colchão no escritório e ela deixou um par de sap­atos. Eram sandálias de salto. Per­gun­taram se eram min­has. E eu não podia diz­er que eram min­has porque eram tão peque­nas. Disse que eram da min­ha sogra. Era da Inês”, diz.

Naque­le momen­to, na casa, esta­va out­ro mil­i­tante, Cacá. Edda não se lem­bra do sobrenome dele. “O Cacá, coita­do, não sabia o que faz­er. Ele se meteu no ban­heiro e abriu o chu­veiro. Aí o poli­cial entrou, viu chu­veiro aber­to, out­ro poli­cial entrou: ‘O sen­hor toma ban­ho de cue­ca?’ e o fiz­er­am sair de cue­ca mol­ha­da. Aí tele­fonaram para o quar­tel e dis­ser­am: ‘Tem out­ro sujeito aqui, um tal de Cacá. Então traz’.  Ele disse: ‘Mas no car­ro não cabe’. Aí o próprio Cacá disse: ‘Não tem prob­le­ma, meu car­ro está aí fora’. Era para rir. Depois ele me disse, que ani­mal que eu fui”. Os poli­ci­ais aceitaram a ofer­ta e o levaram no próprio car­ro.

A prisão do mari­do ocor­reu durante a Copa do Mun­do de 1970. “Ele foi pre­so depois do primeiro jogo do Brasil e foi solto uma sem­ana depois da vitória”, diz. Os mil­itares que­ri­am que ele falasse sobre o paradeiro do irmão. Durante esse perío­do, tan­to Zwinglio quan­do Edda sofr­eram tor­tu­ra psi­cológ­i­ca. Ela esta­va grávi­da de cin­co meses, depois de já ter per­di­do um bebê.

Segun­do Edda, os mil­itares ameaçavam Zwinglio, dizen­do que matari­am o fil­ho, que nem mes­mo tin­ha nasci­do, e que o deixari­am pre­so na solitária. A ela, eles nun­ca diziam o paradeiro do mari­do, sem­pre que ela ten­ta­va vis­i­tar, diziam que ele tin­ha sido trans­feri­do. Cer­ta vez mostraram uma calça cheia de sangue e dis­ser­am que ele tin­ha deix­a­do ali.

Nesse perío­do, Edda pre­cisou con­tar com uma rede de apoio e com a igre­ja porque a própria casa ficou lacra­da pelo regime e ela tin­ha fica­do ape­nas com a roupa do cor­po.

Desaparecimento

No dia 15 de maio de 1971, Ivan foi pre­so. Logo depois, Edda e Zwinglio rece­ber­am os pas­s­aportes, que tin­ham fica­do reti­dos pela polí­cia. Eles rece­ber­am instruções para deixar o país. Eles foram, então, para o Uruguai. Em 1973, hou­ve um golpe mil­i­tar no Uruguai e o casal, então, foi para a Ale­man­ha, onde Zwinglio con­seguiu uma bol­sa de doutora­do. Eles voltari­am para o Brasil ape­nas em 1978.

Nesse tem­po começou uma bus­ca incan­sáv­el por Ivan. O pai dele, Lucas de Souza Dias fale­ceu em 1974. “Quan­do se con­venceu de que o Ivan real­mente não volta­va, ele entrou em pâni­co, entrou em depressão”, con­ta Edda.

Quem seguiu com as bus­cas até o dia da própria morte, aos 90 anos, foi a mãe de Ivan, Nair Mota Dias. Ela chegou até mes­mo a procu­rar a esposa do então pres­i­dente, Emílio Gar­ras­tazu Médi­ci, por meio de uma car­ta, envi­a­da em 1971.

Elizan­dra Dias foi a segun­da esposa de Zwinglio, ela tam­bém par­ticipou da hom­e­nagem a Ivan na UFF. Ela acom­pan­hou parte das bus­cas de Nair. “Ela procurou esse fil­ho incansavel­mente. Ela chegou a diz­er para mim que, mes­mo depois que a gente já sabia que ele tin­ha mor­ri­do, em muitas man­hãs de domin­go eu me pega­va imag­i­nan­do que ele ia abrir a por­ta e falar assim: ‘Mãe, eu vim almoçar’. A mente sem­pre recor­ren­do a armadil­has de sen­ti­men­to”, diz Elizan­dra.

Com o pas­sar dos anos, a bus­ca foi se tor­nan­do solitária. “Ela ficou um pouco só, nes­sa dor”, diz Elizan­dra.

“Porque o restante da família não com­preen­dia o que tin­ha havi­do. Se acon­te­ceu algu­ma coisa foi porque ela não criou dire­ito. A cul­pa era dela, que não tin­ha cri­a­do dire­ito. Ela não foi a mãe que dev­e­ria ter sido e não criou ele den­tro da igre­ja. Se tivesse feito isso, ele não teria sum­i­do”.

Out­ros pre­sos políti­cos dis­ser­am que ouvi­ram notí­cias sobre o paradeiro de Ivan enquan­to estavam pre­sos. Segun­do Edda, foi Inês Eti­enne quem trouxe a ela a infor­mação de que Ivan tin­ha sido mor­to, o que nun­ca foi con­fir­ma­do ofi­cial­mente.

“A Inês con­tou para a gente que chegaram lá e dis­ser­am: ‘Hoje pegare­mos teu ami­go’. E depois chegaram com uma gar­rafa de cham­pan­he e dis­ser­am: ‘Vamos brindar a morte do Cabana’. Isso ela con­tou para mim e para o Zwinglio”.

Sobre o que o cun­hado rep­re­sen­ta para ela, Edda sin­te­ti­za emo­ciona­da: “Para mim Ivan rep­re­sen­ta a doçu­ra que luta pela justiça como um leão”.

Depois de encer­rar a entre­vista, Edda con­ver­sou um pouco mais com a reportagem e final­i­zou o encon­tro com uma citação de um con­ter­râ­neo, o jor­nal­ista e escritor uruguaio Eduar­do Galeano: “Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de cam­in­har”. E com­ple­men­ta: “‘A vitória é cer­ta e a luta con­tin­ua’. Era algo que a gente sem­pre dizia”.

Edição: Denise Griesinger

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