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Uso de imóveis privados para tortura une civis e militares na ditadura

Repro­dução: © Ana Car­oli­na Neira/Memorial da Resistên­cia

Comissão Nacional da Verdade mapeou esses espaços em vários estados


Publicado em 31/03/2024 — 11:02 Por Daniel Mello — Repórter da Agência Brasil — São Paulo

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Uma casa disc­re­ta em um bair­ro res­i­den­cial, um sítio usa­do para chur­ras­cos em fim de sem­ana e até uma sala do com­plexo indus­tri­al de uma multi­na­cional, lugares com pouco em comum, além de terem sido usa­dos para tor­tu­ra e exe­cuções. Ao lon­go dos anos, pesquisadores e ativis­tas têm lem­bra­do em diver­sos momen­tos que a ditadu­ra que coman­dou o Brasil entre 1964 e 1985 não era ape­nas mil­i­tar, mas foi con­duzi­da tam­bém por ten­tácu­los civis. Inclu­sive a vio­len­ta repressão con­tra os opos­i­tores teve par­tic­i­pação de agentes sem vín­cu­lo dire­to com os quar­téis.

Essas conexões ficam claras na existên­cia de diver­sos pon­tos onde eram con­duzi­dos inter­ro­gatórios e desa­parec­i­men­tos força­dos fora de qual­quer estru­tu­ra mil­i­tar ou gov­er­na­men­tal. Ape­sar de con­heci­dos, o caráter com­ple­ta­mente não ofi­cial dess­es imóveis em relação a estru­turas públi­cas deixou pou­cas evidên­cias para que seja pos­sív­el saber exata­mente quan­tos eram e o que se pas­sou ness­es locais.

“Ess­es espaços clan­des­ti­nos pos­si­bil­i­taram uma artic­u­lação exata­mente para fora das insti­tu­cional­i­dades. E isso acho que dava mais margem para orga­ni­za­ções para­le­las atu­arem ness­es espaços. Ao mes­mo tem­po em que tam­bém cri­a­va laços de par­tic­i­pação da sociedade civ­il ness­es proces­sos”, diz a his­to­ri­ado­ra e pesquisado­ra do Memo­r­i­al da Resistên­cia Julia Gumieri.

A existên­cia dess­es locais surge em diver­sas inves­ti­gações feitas sobre os crimes cometi­dos pela ditadu­ra ao lon­go dos anos. A Comis­são Nacional da Ver­dade mapeou a existên­cia de cen­tros de tor­tu­ra em vários esta­dos, como Rio de Janeiro, Pará e Minas Gerais.

Na comis­são par­la­men­tar de inquéri­to (CPI) aber­ta pela Câmara Munic­i­pal de São Paulo em 1990, as inves­ti­gações pas­saram por um sítio apon­ta­do como local de tor­tu­ra e exe­cuções em Par­el­heiros, extremo sul paulis­tano.

60 ANOS DO GOLPE - DITADURA MILITAR - Uso de imóveis privados para tortura. Ossadas de presos políticos no Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo. Foto: Marcelo Vigneron/Memorial da Resistência
Repro­dução: Ossadas de pre­sos políti­cos no Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo — Marce­lo Vigneron/Memorial da Resistên­cia

O alvo ini­cial dos tra­bal­hos da CPI era a vala clan­des­ti­na no Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte paulis­tana, onde foram ocul­ta­dos os restos mor­tais de opos­i­tores assas­si­na­dos pela repressão. Porém, os tra­bal­hos tam­bém inves­ti­garam a existên­cia da Fazen­da 31 de Março, na região de Mar­si­lac, no extremo sul da cap­i­tal paulista, próx­i­mo à divisa com Itan­haém e Embu-Guaçu.

Difícil identificação

Havia a sus­pei­ta de que esse teria sido o lugar para onde o dra­matur­go e mil­i­tante Mau­rí­cio Segall, fil­ho do pin­tor Lasar Segall, foi lev­a­do ao ser sequestra­do pelo regime. Ao depor na Câmara Munic­i­pal, Segall não recon­heceu o local pelas fotos apre­sen­tadas pelos vereadores.

“Estou olhan­do isto aqui e diria que não é a casa onde estive. Por duas razões: a primeira é que, mes­mo ven­da­do – isso me lem­bro per­feita­mente – eu desci uma escad­in­ha de onde o car­ro esta­va para­do para chegar à entra­da da casa. Isso me lem­bro na ida e na vol­ta. Eu ia meio ampara­do, porque esta­va ven­da­do. E aqui, me parece pelo menos, não há pos­si­bil­i­dade de ter esca­da, não tem nada”, respon­deu ao ver as fotos do local na inves­ti­gação fei­ta pelos vereadores em 1990, puxan­do da memória o que havia pas­sa­do em 1970.

60 ANOS DO GOLPE - DITADURA MILITAR - Uso de imóveis privados para tortura. - Ivan Seixas. Foto: Arquivo Pessoal/Memorial da Resistência
Repro­dução: Escritor e ex-pre­so políti­co Ivan Seixas foi coor­de­nador da Comis­são Estad­ual da Ver­dade de São Paulo  — Arqui­vo Pessoal/Memorial da Resistên­cia

A fazen­da era de pro­priedade do empresário Joaquim Rodrigues Fagun­des, que mor­reu antes de ser ouvi­do pela CPI. O escritor e ex-pre­so políti­co Ivan Seixas disse que o fil­ho de um dos mil­itares que fre­quen­tavam o sítio con­tou que o local tam­bém servia de pon­to de con­frat­er­niza­ção para os agentes da repressão. “Tin­ha o fil­ho de um mil­i­co, do capitão Enio Pimentel Sil­veira, que era fun­cionário da prefeitu­ra. A gente pediu e ele con­cor­dou em ir [até a Fazen­da 31 de Março], porque ele ia lá para chur­ras­cos. O pai dele e o [del­e­ga­do Sér­gio] Fleury fazi­am chur­ras­cos e lev­avam os fil­hos”, disse em entre­vista à Agên­cia Brasil. Seixas foi coor­de­nador da Comis­são Estad­ual da Ver­dade de São Paulo e asses­sor espe­cial da Comis­são Nacional da Ver­dade.

É prováv­el que Segall não ten­ha recon­heci­do o local porque a equipe do del­e­ga­do Sér­gio Fleury o lev­ou para out­ro sítio, em Aru­já, na Grande São Paulo, a norte da cap­i­tal. Diver­sos depoi­men­tos relatam que o del­e­ga­do, um dos mais con­heci­dos tor­tu­radores da ditadu­ra, tin­ha a sua dis­posição uma chá­cara, que nun­ca teve local­iza­ção exa­ta iden­ti­fi­ca­da.

Durante o tem­po que esteve pre­so nesse sítio, Segall pres­en­ciou a morte de Joaquim Fer­reira Câmara, con­heci­do pelo codi­nome de Tole­do, um dos líderes da Ação Lib­er­ta­do­ra Nacional (ALN). Segun­do rela­to de out­ro con­heci­do agente da repressão, Car­los Alber­to Augus­to, chama­do de Car­lin­hos Metral­ha, após ser cap­tura­do no Rio de Janeiro e ficar em cativeiro em diver­sos locais, Eduar­do Collen Leite, o Bacuri, tam­bém teria pas­sa­do pelo sítio usa­do por Fleury em Aru­já.

“O sítio aparente­mente tin­ha dois quar­tos, uma sala/cozinha e um ban­heiro. Os choques elétri­cos apli­ca­dos no pau-de-arara eram ger­a­dos num apar­el­ho, aciona­do por manivela man­u­al”, con­tou Segall em depoi­men­to à Comis­são Espe­cial sobre Mor­tos e Desa­pare­ci­dos Políti­cos. Tam­bém estavam pre­sos no local Viri­a­to Xavier de Mel­lo Fil­ho e Maria de Lour­des Rego Melo.

Durante a tor­tu­ra, o artista viu um homem, que depois iden­ti­fi­cou como sendo Joaquim Câmara, com sin­tomas de um ataque cardía­co. Ape­sar de ter rece­bido atendi­men­to médi­co, o líder da ALN mor­reu no local, o que fez com que os demais pre­sos fos­sem lev­a­dos de vol­ta para o Depar­ta­men­to de Ordem Políti­ca e Social (Dops), no cen­tro da cap­i­tal paulista.

Tam­bém per­ten­cente ao empresário Joaquim Rodrigues Fagun­des, dono da trans­porta­do­ra Rimet e da Fazen­da 31 de Março, a chama­da Casa da Mooca era uti­liza­da para man­ter pre­sos durante dias opos­i­tores da ditadu­ra. O relatório final da Comis­são da Ver­dade da Assem­bleia Leg­isla­ti­va de São Paulo denun­cia que o imóv­el local­iza­do na Rua Fer­nan­do Fal­cão, no bair­ro da Mooca, zona leste paulis­tana, foi colo­ca­do a serviço da repressão na déca­da de 1970. Segun­do o doc­u­men­to, o local tam­bém pode ter sido usa­do como cativeiro para Bacuri.

Lugares ainda não revelados

Sair vivo de um lugar como esse não era a regra. “Foram poucos sobre­viventes dess­es espaços de modo ger­al, exata­mente porque, como eles não eram parte das estru­turas ofi­ci­ais, o obje­ti­vo não era pren­der. O obje­ti­vo era recol­her infor­mações, tor­tu­rar e exe­cu­tar, porque você não pode ter sobre­viventes, teste­munhas dess­es espaços não ofi­ci­ais”, expli­ca Julia Gumieri.

Sem reg­istros e sem teste­munhas, é pos­sív­el, segun­do a pesquisado­ra, que alguns dess­es locais não ten­ham sequer sido men­ciona­dos nas inves­ti­gações feitas até ago­ra. “Imag­i­nan­do o que se perdeu de doc­u­men­tação não local­iza­da e mes­mo de fal­ta de sobre­vivente que os próprios cole­gas de mil­itân­cia não sou­ber­am, é muito prováv­el que ten­ha exis­ti­do muito mais, que seja uma cama­da ain­da peque­na que a gente sabe sobre”, acres­cen­ta a his­to­ri­ado­ra.

60 ANOS DO GOLPE - DITADURA MILITAR - Uso de imóveis privados para tortura. - Sítio 31 de Março, São Paulo. Foto: Wikipedia
Repro­dução Sítio 31 de Março, onde teri­am sido mor­tos os mil­i­tantes Sônia Angel Jones e Antônio Car­los Bical­ho Lana — Wikipedia

Na Fazen­da 31 de Março, teri­am sido mor­tos em 1973 os mil­i­tantes da ALN Sônia Angel Jones e Antônio Car­los Bical­ho Lana. Na CPI de 1990, o ex-dep­uta­do Afon­so Cel­so, úni­co sobre­vivente con­heci­do do sítio, con­tou sobre o que pas­sou lá. Ape­sar de ven­da­do, ele se lem­bra­va que atrav­es­sou uma lin­ha fér­rea para chegar ao local. “Fui con­duzi­do para um sub­ter­râ­neo, ou uma sala sub­ter­rânea ou coisa assim, porque exis­ti­am qua­tro degraus. Qua­tro degraus, não, qua­tro lances de esca­da, e lá ime­di­ata­mente me des­pi­ram e pas­saram a me tor­tu­rar”, rela­tou aos vereadores.

“Eu provavel­mente des­maiei ou qual­quer coisa assim, das seví­cias de que fui víti­ma. Depois acordei e vejo que me botaram já num out­ro tipo de tor­tu­ra, que não era mais pau-de-arara”, segue a história con­ta­da por Cel­so. “Me puser­am no que eles chamavam ‘pisci­na’, que era uma espé­cie de poço, de fun­do cimen­ta­do, mas cheio de lodo. Eu pisa­va no lodo, e ali eles brin­cavam de afoga­men­to. Me sufo­cavam, me afo­gavam”, disse na ocasião.

60 ANOS DO GOLPE - DITADURA MILITAR - Uso de imóveis privados para tortura. Fazenda em Araçariguama, na Rodovia Castelo Branco, em São Paulo. Foto: Andréia Lago/Memorial da Resistência
Repro­dução: Fazen­da em Araçarigua­ma, na Rodovia Caste­lo Bran­co, usa­da para tor­tu­ra e exe­cução de opos­i­tores ao regime — Andréia Lago/Memorial da Resistên­cia

Out­ros lugares só foram con­heci­dos por rev­e­lações dos próprios agentes da repressão, como Mari­val Chaves Dias do Can­to, ex-sar­gen­to que atu­ou no Cen­tro de Oper­ações de Defe­sa Inter­na (DOI-Codi). Mes­mo estando den­tro de um dos maiores cen­tros de tor­tu­ra da ditadu­ra, Chaves negou ter par­tic­i­pa­do desse tipo de vio­lên­cia ou oper­ações de repressão na rua. Fez rev­e­lações em diver­sos depoi­men­tos, tan­to a CPI da Vala de Perus, como tam­bém a Comis­são Nacional da Ver­dade. Foi o ex-agente da repressão que iden­ti­fi­cou a Boate Querosene, em Itape­vi, e o Sítio em Araçarigua­ma como locais usa­dos para tor­tu­ra e exe­cução de opos­i­tores ao regime.

Em out­ros casos ain­da exis­tem dúvi­das e lacu­nas. Até hoje não se sabe o local onde, em 1978, Rob­son Luz foi tor­tu­ra­do e mor­to após ser pre­so acu­sa­do de roubar uma caixa de fru­tas. O proces­so rel­a­ti­vo ao caso, que à época cau­sou indig­nação e lev­ou à for­mação do Movi­men­to Negro Unifi­ca­do, só foi desar­quiv­a­do em 2022.

Ao anal­is­ar a doc­u­men­tação, a pesquisado­ra Rena­ta Eleutério, do Cen­tro de Pesquisa e Doc­u­men­tação Históri­ca Gua­ianás, diz que as infor­mações são de que ele foi pre­so no 44º Dis­tri­to Poli­cial, de Gua­ianas­es, zona leste paulis­tana. Porém, há indí­cios de que ele foi lev­a­do para out­ro local no perío­do em que esteve sob poder dos poli­ci­ais. “No proces­so, em um dos depoi­men­tos, o rapaz indi­ca que ele foi reti­ra­do daque­la del­e­ga­cia e lev­a­do para out­ro lugar. E aí depois foi joga­do na del­e­ga­cia, reti­ra­do de lá e joga­do em qual­quer out­ro can­to”, rev­ela a pesquisado­ra.

Não há clareza, no entan­to, do local onde Luz teria rece­bido pan­cadas e choques elétri­cos. Mas exis­tem diver­sos indí­cios de que alguns agentes da repressão à oposição políti­ca tam­bém atu­avam na exe­cução de pre­sos por crimes comuns, como no caso da acusação fei­ta con­tra Luz. “As estru­turas e os execu­tores estavam muito em diál­o­go, even­tual­mente eram até os mes­mos, como o Esquadrão da Morte [grupo de exter­mínio], que era um grupo de poli­ci­ais da Polí­cia Civ­il vin­cu­la­dos ao Dops [Depar­ta­men­to de Ordem Políti­ca e Social]”, exem­pli­fi­ca Julia Gumieri.

60 ANOS DO GOLPE - DITADURA MILITAR - Uso de imóveis privados para tortura. - Boate Querosene, São Paulo. Foto: Cacalos Garrastazu/Memorial da Resistência
Repro­dução: Boate Querosene, em Itape­vi, foi iden­ti­fi­ca­da como local de tor­tu­ra por um agente da repressão  — Caca­los Garrastazu/Memorial da Resistên­cia

Não foi iden­ti­fi­ca­do, porém, até o momen­to que as casas e sítios usa­dos pela repressão ten­ham abri­ga­do out­ras ativi­dades. “Eu não pos­so afir­mar que o Esquadrão da Morte se uti­li­zou de um dess­es espaços. Mas, se o Fleury é um del­e­ga­do da polí­cia que é ati­vo nos proces­sos de exter­mínio, tor­tu­ra, e com­põe o Esquadrão da Morte, assim, even­tual­mente, ele pode usar o mes­mo espaço”, pon­dera a pesquisado­ra.

Essa rede de imóveis sem nen­hu­ma lig­ação for­mal com o Esta­do é um apro­fun­da­men­to dos pro­ced­i­men­tos ile­gais e clan­des­ti­nos que já acon­te­ci­am no DOI-Codi e out­ras insta­lações mil­itares. O que só era pos­sív­el dev­i­do às diver­sas for­mas de apoio de empresários ao regime, com cessão de espaços, veícu­los, finan­cia­men­to dire­to e até vig­ilân­cia sobre os próprios empre­ga­dos. A mon­ta­do­ra Volk­swa­gen recon­heceu que aju­dou a repressão a perseguir os próprios fun­cionários. O fer­ra­menteiro Lúcio Bel­len­tani con­tou que foi tor­tu­ra­do den­tro do com­plexo indus­tri­al em São Bernar­do do Cam­po. A empre­sa fez um acor­do de reparação com o Min­istério Públi­co Fed­er­al.

Doutrina de guerra

A tor­tu­ra não era uma novi­dade para as insti­tu­ições brasileiras. Na ditadu­ra de Getúlio Var­gas, os opos­i­tores tam­bém eram persegui­dos e pre­sos. “Durante os out­ros perío­dos, a repressão políti­ca era uma repressão fei­ta por órgãos ofi­ci­ais. Pren­dia, tor­tu­ra­va e solta­va”, diz Ivan Seixas. A ditadu­ra instau­ra­da a par­tir do golpe de 1964, no entan­to, incor­porou uma visão de guer­ra con­tra a própria pop­u­lação, basea­da, em grande parte, nas guer­ras colo­ni­ais da França na Indochi­na (Viet­nã) e na Argélia.

“A dout­ri­na da guer­ra rev­olu­cionária, como os france­ses chamavam, foi um ele­men­to-chave para preparar a orga­ni­za­ção e a estru­tu­ração dos serviços de infor­mação brasileiros, que foram cal­ca­dos nos serviços de infor­mações france­ses durante a Guer­ra da Argélia [1954 a 1962]”, diz o pesquisador Rodri­go Nabu­co de Araújo, autor do livro Diplo­mates en Uni­forme [Diplo­matas de Far­da], que tra­ta da atu­ação dos mil­itares france­ses a par­tir dos serviços de diplo­ma­cia no Brasil entre 1956 e 1974.

O nome mais con­heci­do por traz­er as exper­tis­es france­sas para o Brasil é o gen­er­al Paul Aus­sa­ress­es. Antes de mor­rer, em 2013, o ofi­cial recon­heceu ter uti­liza­do a tor­tu­ra para com­bat­er a insurgên­cia argeli­na. “Ele disse que tor­tur­ou, que matou, que for­mou tor­tu­radores, e por isso ele acabou per­den­do tudo. Ele perdeu a patente de gen­er­al, perdeu o salário de aposen­ta­do­ria de gen­er­al. Foi um golpe muito grande que ele lev­ou depois de ter dito tudo o que disse”, con­tex­tu­al­iza Araújo antes de afir­mar que Aus­sa­ress­es não foi o prin­ci­pal respon­sáv­el por traz­er as estraté­gias france­sas para o Brasil.

“Tem um out­ro que é muito mais insidioso do que o que o Aus­sa­ress­es que é o Yves Boul­nois”, desta­ca o pesquisador. Chegan­do ao Brasil em 1969, o coro­nel francês aju­dou, segun­do Araújo, na estru­tu­ração do DOI-Codi e esteve pre­sente nas oper­ações con­tra a guer­ril­ha coman­da­da por Car­los Lamar­ca no Vale do Ribeira. “Ele par­ticipou da orga­ni­za­ção da oper­ação e depois da super­visão, da análise dos dados que foram col­hi­dos durante os inter­ro­gatórios, durante as tor­turas”, detal­ha Araújo a respeito do papel estratégi­co de Boul­nois.

O coro­nel chegou ao Brasil em 1969 como adi­do mil­i­tar. Em cor­re­spondên­cia envi­a­da ao então min­istro dos Exérci­tos da França, Pierre Mess­mer, Boul­nois infor­ma­va sobre os avanços na estru­tu­ração das forças da repressão brasileiras. “Com vários meses de treina­men­to ade­qua­do, cada unidade é, ago­ra, capaz, inde­pen­dente de qual seja a mis­são especí­fi­ca, de par­tic­i­par de uma oper­ação de guer­ril­ha”, escreveu ao supe­ri­or em cor­re­spondên­cia aces­sa­da por Araújo e disponi­bi­liza­da em seu livro.

Hierarquias paralelas

A exper­iên­cia france­sa de enfrentar guer­ril­has em um ambi­ente urbano, como acon­te­ceu na Argélia, influ­en­ciou, segun­do o pesquisador, na cri­ação da Oper­ação Ban­deirante, que reprim­iu os gru­pos arma­dos que lutavam con­tra a ditadu­ra em São Paulo. “Os mil­itares do 2º Exérci­to em São Paulo se inspi­raram ampla­mente das sessões admin­is­tra­ti­vas espe­ci­ais, que eram orga­ni­za­ções civis e mil­itares na Guer­ra da Argélia, para estru­tu­rar a Oper­ação Ban­deirantes e trans­for­mar essa exper­iên­cia da guer­ra colo­nial france­sa, na Guer­ra da Argélia, em algo pos­sivel­mente uti­lizáv­el no Brasil”, expli­ca Araújo.

“Se inspirou nes­sa cen­tral­iza­ção da infor­mação, que é o caso francês, dessa reunião de civis e mil­itares em um só coman­do, e da orga­ni­za­ção das oper­ações, o que eles chamavam de hier­ar­quias para­le­las. Quer diz­er, que você tin­ha uma rede de coman­do, uma hier­ar­quia de coman­do que vem de cima para baixo, mas você tin­ha uma hier­ar­quia para­lela, uma orga­ni­za­ção e uma estru­tu­ra clan­des­ti­na”, detal­ha o pesquisador.

As teo­rias dos mil­itares france­ses surgem tam­bém da ten­ta­ti­va de enten­der a der­ro­ta para as forças de lib­er­tação das anti­gas colô­nias. “Tin­ha a ver com uma neg­ligên­cia dos mil­itares da dimen­são políti­ca e psi­cológ­i­ca do con­fli­to”, diz a respeito das con­clusões dos ofi­ci­ais o coor­de­nador do Lab­o­ratório de Análise em Segu­rança Inter­na­cional e Tec­nolo­gias de Mon­i­tora­men­to da Uni­ver­si­dade Fed­er­al de São Paulo (Unife­sp), Acá­cio Augus­to.

O papel da tortura

“Para essa teo­ria, a sociedade está divi­di­da em três gru­pos”, expli­ca o pro­fes­sor. Esse pen­sa­men­to estratégi­co parte, segun­do ele, do princí­pio de que há uma mino­ria ati­va, que luta con­tra a dom­i­nação colo­nial, no caso das ex-colô­nias france­sas, ou con­tra a ditadu­ra, no caso do Brasil. Há os apoiadores dos proces­sos de dom­i­nação e há  “uma grande maio­r­ia, que eles chamam de neu­tra e pací­fi­ca, e que está à mer­cê de ser con­quis­ta­da pela causa rev­olu­cionária, que deve ser dis­puta­da pelas forças da ordem”.

Por isso, para além do enfrenta­men­to mil­i­tar, foi feito, de acor­do com Augus­to, um esforço para evi­tar que o con­jun­to da pop­u­lação sim­pa­ti­zasse ou apoiasse os gru­pos de resistên­cia. Ao mes­mo tem­po, os gru­pos de oposição são trata­dos como inimi­gos e desuman­iza­dos. “A tor­tu­ra não era um ato de bar­bárie, não era um exces­so do regime, era a própria for­ma de atu­ação do regime, inclu­sive geri­da cien­tifi­ca­mente. A ideia da tor­tu­ra era pro­duzir infor­mação”, enfa­ti­za.

O desa­parec­i­men­to dos tor­tu­ra­dos, prin­ci­pal­mente os que nun­ca foram reg­istra­dos em estru­turas ofi­ci­ais do Esta­do, serve, segun­do Araújo, a alguns propósi­tos. Por um lado, evi­ta a respon­s­abi­liza­ção e reper­cussão públi­ca das mortes, enquan­to, por out­ro deses­ta­bi­liza os opos­i­tores do regime.

“É uma for­ma de você cri­ar uma incerteza muito grande em torno do que acon­te­ceu com essa pes­soa e dessa for­ma de cri­ar uma impunidade em torno das pes­soas que come­ter­am ess­es crimes”, diz o pesquisador.

O gen­er­al francês Aus­sa­ress­es, que ficou con­heci­do pelos cur­sos rela­ciona­dos a tor­tu­ra que pro­movia em Man­aus, é tam­bém, segun­do Araújo, pro­tag­o­nista de um even­to que ilus­tra como a vio­lên­cia era instru­men­tal­iza­da pelos colo­nial­is­tas. “Ele solic­i­tou o está­dio de fute­bol da cidade. Ele tor­tur­ou os pre­sos em frente uns dos out­ros, depois matou todo mun­do. Abriu uma vala comum, jogou todos os cor­pos ali, jogou cal quente em cima, e em cima dis­so ele jogou con­cre­to arma­do. Quer diz­er que não tem como saber quem está enter­ra­do ali. Todos desa­pare­ce­r­am”, con­ta o his­to­ri­ador sobre os fatos ocor­ri­dos na anti­ga cidade de Philippeville, atu­al Skik­da, na Argélia.

Edição: Juliana Andrade

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