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Violência contra entregadores tem herança escravista, diz pesquisador

Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Estudos mostram que entregadores são, em sua maioria, pretos e pardos


Publicado em 07/03/2024 — 07:32 Por Rafael Cardoso — Repórter da Agência Brasil* — Rio de Janeiro

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Não é um caso iso­la­do. Não é ape­nas sobre entre­gadores de aplica­tivos. A história de Nil­ton Ramon de Oliveira, de 24 anos, balea­do por um cliente poli­cial mil­i­tar na terça-feira (4), na zona oeste do Rio de Janeiro, tem dimen­sões estru­tu­rais que reme­tem ao pas­sa­do escrav­ista brasileiro. Esse é o posi­ciona­men­to de Leonar­do Dias Alves, mestre em políti­ca social e pro­fes­sor da Uni­ver­si­dade de Brasília (UnB).

Nas ciên­cias soci­ais, a ideia de estru­tu­ra é fre­quente­mente usa­da para falar de um fenô­meno de lon­ga duração. Por isso, ape­sar da abolição da escravidão no Brasil ter mais de 135 anos, o pro­fes­sor defende que alguns princí­pios que orga­ni­zavam as relações raci­ais e tra­bal­his­tas da época escrav­ista con­tin­u­am no pre­sente.

“O proces­so de explo­ração da força de tra­bal­ho do escrav­iza­do era basea­da no con­t­role e na vio­lên­cia. Com o adven­to da abolição, a vio­lên­cia con­tin­u­ou a ser algo cen­tral, com atrib­u­tos que desuman­izam a força de tra­bal­ho. E a pop­u­lação negra foi colo­ca­da à margem da sociedade, ocu­pan­do espaços racial­mente dis­crim­i­na­dos no mer­ca­do de tra­bal­ho. Ela vai ocu­par pos­tos com menor remu­ner­ação, maior degradação humana, funções braçais e servis”, disse Leonar­do.

“Quem são as pes­soas que fazem tra­bal­hos de limpeza? Quem são os que estão majori­tari­a­mente em tra­bal­hos de entre­ga? Que fazem jor­na­da gigantes? São essas pes­soas que podem tomar um tiro, ser agre­di­das por aque­les que acham que podem tudo por estarem pagan­do. É uma vio­lên­cia volta­da para a pop­u­lação negra, em um espaço de tra­bal­ho que é des­ti­na­do à pop­u­lação negra. O racis­mo é trata­do como algo moral, pes­soal, com­por­ta­men­tal. E nun­ca dimen­sion­a­do enquan­to uma estru­tu­ra. Todo o Esta­do e a sociedade dev­e­ri­am ser cobra­dos e respon­s­abi­liza­dos”, com­ple­men­ta o pesquisador.

Rio de Janeiro (RJ) 06/03/2024 - Personagem Entregador de APP, Rafael Simões - Amigos, seguem fotos para a matéria “Clientes nos confundem com garçons”, reclama entregador de aplicativo. Foto: Rafael Simões/Arquivo Pessoal
Repro­dução: Rio de Janeiro — “Clientes nos con­fun­dem com garçons”, recla­ma entre­gador de aplica­ti­vo. Foto Rafael Simões/Arquivo Pes­soal

O cam­in­ho para ter relações de tra­bal­ho jus­tas e antir­racis­tas pas­saria por uma trans­for­mação social pro­fun­da, com mudança de con­sciên­cia cole­ti­va, anal­isa Leonar­do Dias. Mas, de for­ma ime­di­a­ta e especí­fi­ca sobre a situ­ação dos entre­gadores, ele cobra atu­ação mais inci­si­va das platafor­mas dig­i­tais que os empregam, como o iFood.

“É necessário um tra­bal­ho reflex­i­vo e críti­co dessas platafor­mas. Se isso for do inter­esse delas tam­bém. Porque, pela lóg­i­ca do cap­i­tal e do lucro, será que é impor­tante para elas que o tra­bal­hador ten­ha segu­rança? A segu­rança de não sofr­er racis­mo no ambi­ente de tra­bal­ho? Depois de uma jor­na­da exaus­ti­va, ter a pos­si­bil­i­dade de mor­rer por con­ta dis­so? Há inter­esse em resolver e lidar com isso, esta­b­ele­cer políti­cas antir­racis­tas? Ou está tudo bem, porque mor­reu um, colo­ca mais dois que estão inter­es­sa­dos no tra­bal­ho tam­bém?”, ques­tiona o pesquisador.

Dados e iniciativas do iFood

A empre­sa iFood disse à Agên­cia Brasil que tem uma cen­tral de apoio jurídi­co e psi­cológi­co para tratar casos de vio­lên­cia con­tra os entre­gadores. Em 2024, foram noti­fi­cadas 13.576 denún­cias de ameaça e agressão físi­ca à platafor­ma. Em 16% dos casos aten­di­dos, os prob­le­mas acon­te­ce­r­am porque o cliente exigiu que os entre­gadores subis­sem nos aparta­men­tos.

O Rio de Janeiro é con­sid­er­a­do o lugar mais críti­co, o que fez a empre­sa cri­ar a primeira cen­tral físi­ca de atendi­men­to para tratar casos como ess­es, na Vila da Pen­ha, bair­ro da zona norte. Tam­bém foi lança­da uma cam­pan­ha especí­fi­ca, com o nome Bora Descer, para con­sci­en­ti­zar as pes­soas que elas têm que pegar o pedi­do.

Rio de Janeiro (RJ) 06/03/2024 – Entregadores de aplicativo trabalham na região do Centro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Rio de Janeiro — Entre­gadores de aplica­ti­vo tra­bal­ham no cen­tro da cap­i­tal — Foto Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“A ini­cia­ti­va recebe denún­cias do Brasil todo. Exis­tem áreas onde os prob­le­mas são maiores. No caso do Rio, com mais inci­dentes, isso pode acon­te­cer pelo fato de ser uma cidade que enfrenta desafios socioe­conômi­cos, como desigual­dade de ren­da, fal­ta de aces­so aos serviços bási­cos, além de altos índices de vio­lên­cia urbana. E ess­es prob­le­mas podem se man­i­fes­tar nas inter­ações entre entre­gadores e clientes”, expli­ca Dione Assis, fun­dado­ra da Black Sis­ter in Law, cole­ti­vo de advo­gadas negras crim­i­nal­is­tas respon­sáv­el pela cen­tral de atendi­men­to do iFood.

Dione Assis entende que existe uma nat­u­ral­iza­ção das agressões e que, muitas vezes, elas são vis­tas como parte con­sti­tu­inte da ativi­dade de entre­gador. A prin­ci­pal expli­cação para ess­es com­por­ta­men­tos, segun­do ela, é o racis­mo.

“Há estu­dos que com­pro­vam que os entre­gadores no Brasil são majori­tari­a­mente home­ns pre­tos e par­dos. Isso é uma infor­mação impor­tante porque, no imag­inário do cliente, nec­es­sari­a­mente virá ao seu encon­tro uma pes­soa com essas car­ac­terís­ti­cas. O que dá a ele a sen­sação de que pode agir assim, com deter­mi­nadas exigên­cias. E isso pode ger­ar uma situ­ação de dis­crim­i­nação dess­es tra­bal­hadores”, diz a advo­ga­da.

Direitos trabalhistas e sociais

O Min­istério Públi­co do Tra­bal­ho (MPT) disse estar aten­to aos episó­dios de agressão e humil­hação con­tra os entre­gadores e desta­cou a existên­cia de nor­mas especí­fi­cas que proíbem o racis­mo e out­ras for­mas de dis­crim­i­nação no ambi­ente de tra­bal­ho.

“Exis­tem dis­posições con­sti­tu­cionais que vedam con­du­tas dis­crim­i­natórias con­tra os tra­bal­hadores. Por exem­p­lo, a Lei 9.029, que proíbe qual­quer práti­ca dis­crim­i­natória e lim­i­ta­ti­va nas relações do tra­bal­ho. Para o MPT, as empre­sas que explo­ram esse tipo de ativi­dade devem garan­tir que os tra­bal­hadores não sofram qual­quer tipo de dis­crim­i­nação e pos­sam desen­volver suas ativi­dades com segu­rança, para que não sofram nen­hum dano nen­hum ou agra­vo à saúde”, disse a procu­rado­ra do tra­bal­ho, Juliane Mombel­li.

O MPT tam­bém reforçou que as empre­sas pro­pri­etárias dos aplica­tivos de entre­ga são respon­sáveis pela segu­rança dos tra­bal­hadores e devem assumir a respon­s­abil­i­dade pelo cumpri­men­to dos dire­itos deles.

“Essas platafor­mas dig­i­tais devem imple­men­tar medi­das de pro­teção, inde­pen­den­te­mente do ques­tion­a­men­to quan­to à natureza jurídi­ca dos vín­cu­los que os tra­bal­hadores têm com as empre­sas. Ou seja, é dev­er dos empre­gadores e das empre­sas pro­pri­etárias de platafor­mas mon­i­torar e avaliar reg­u­lar­mente todos os riscos e impactos na roti­na de tra­bal­ho”, afir­ma Juliane.

*Colaborou Vini­cius Lis­boa

Edição: Graça Adju­to

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