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Violência contra mulher quilombola é dupla, diz líder comunitária

Repro­dução: © Tânia Rêgo/Agência Brasil

Em evento, representantes de quilombos levam queixas a autoridades


Pub­li­ca­do em 02/03/2024 — 14:04 Por Bruno de Fre­itas Moura — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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A garan­tia da posse da ter­ra é o maior desafio de comu­nidades quilom­bo­las. Esse é o prin­ci­pal reca­do que moradores de quilom­bos do Rio de Janeiro fiz­er­am questão de fris­ar para rep­re­sen­tantes de órgãos do poder públi­co que par­tic­i­param do Sem­i­nário Quilom­bo­la Nego Bis­po, nes­ta sem­ana, no Rio de Janeiro.

O encon­tro pro­movi­do pela Defen­so­ria Públi­ca do Rio de Janeiro leva no nome a hom­e­nagem a um dos maiores int­elec­tu­ais quilom­bo­las do país. O even­to reuniu líderes comu­nitários que pud­er­am expres­sar as prin­ci­pais difi­cul­dades e neces­si­dades enfrentadas pelos ter­ritórios uma vez ocu­pa­dos por negros escrav­iza­dos e descen­dentes. Foram con­vi­dadas autori­dades do Poder Judi­ciário, de min­istérios e do Insti­tu­to Nacional de Col­o­niza­ção e Refor­ma Agrária (Incra), que tra­ta de tit­u­lar­iza­ção das comu­nidades quilom­bo­las.

Luci­mara Muniz vive no quilom­bo de Cus­todópo­lis, em Cam­pos de Goy­ta­cazes, no norte do esta­do do Rio. Ela enfren­tou a dis­tân­cia de aprox­i­mada­mente 280 quilômet­ros para estar no sem­i­nário e denun­ciar o que con­sid­era o maior prob­le­ma da pop­u­lação quilom­bo­la.

“A questão da demar­cação fundiária das ter­ras quilom­bo­las é o pon­to chave, obje­ti­vo prin­ci­pal para as comu­nidades, porque se você não tiv­er o dire­ito da ter­ra, as comu­nidades, prin­ci­pal­mente as lid­er­anças, ficam con­stan­te­mente ameaçadas. As out­ras pes­soas que aju­dam as lid­er­anças tam­bém sofrem ameaça”, disse à Agên­cia Brasil.

Rio de Janeiro (RJ), 01/03/2024 - Lucimara Muniz, do Quilombo de Custodópolis, fala durante o Seminário Quilombola Nego Bispo, na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, centro da cidade. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Luci­mara Muniz, do Quilom­bo de Cus­todópo­lis, defende que a demar­cação de ter­ras é pon­to chave  Tânia Rêgo/Agência Brasil

Luci­mara rela­tou o caso de um líder ameaça­do que, além de perder o ter­ritório, “acabou per­den­do o dire­ito à cidade” e a liber­dade de ir e vir.

“Con­heço o caso de um líder que mora den­tro de um car­ro porque ele não pode ir ao ter­ritório dele nem andar pela cidade para vis­i­tar a família. Quan­do ele vai, vai escon­di­do. É uma pes­soa que perdeu o dire­ito de ir e vir”, con­ta a inte­grante da Coor­de­nação Nacional de Artic­u­lação de Quilom­bos (Conaq).

Luci­mara apon­ta a espec­u­lação imo­bil­iária e o avanço da fron­teira agrí­co­la como cau­sadores dessa per­da de ter­ritório por parte de descen­dentes de escrav­iza­dos. Ela cita o episó­dio do assas­si­na­to de Maria Bernadete Pací­fi­co, a Mãe Bernadete, em agos­to de 2023, para expor que o prob­le­ma não se limi­ta ao Rio de Janeiro. Mãe Bernadete era líder do Quilom­bo Pitan­ga dos Pal­mares, na região met­ro­pol­i­tana de Sal­vador.

Mulheres

A situ­ação de inse­gu­rança de quilom­bo­las é agrava­da quan­do se tra­ta de ser mul­her, diz Rejane Maria de Oliveira, do quilom­bo Maria Joaquina, em Cabo Frio, a 3,5 horas de car­ro da cap­i­tal do Rio de Janeiro.

“Quem fica mais em casa é a mul­her negra, porque existe um racis­mo grande em que as por­tas de emprego não se abrem. Ela aca­ba fican­do den­tro do ter­ritório, cuidan­do dos fil­hos, da ter­ra, e é ela que vê o ter­ritório ser descar­ac­ter­i­za­do, sendo toma­do”, diz a inte­grante da Conaq.

“O ataque vem duas vezes mais forte porque somos mul­heres. A ameaça e a rai­va vêm duas vezes mais fortes porque somos mul­heres”, disse à Agên­cia Brasil.

Rio de Janeiro (RJ), 01/03/2024 - Rejane Maria de Oliveira, do Quilombo Maria Joaquina, fala durante o Seminário Quilombola Nego Bispo, na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, centro da cidade. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Rejane Maria de Oliveira, do Quilom­bo Maria Joaquina, ressalta que os ataques a quilom­bo­las são maiores con­tra as mul­heres — Tânia Rêgo/Agência Brasil

Rejane enfa­ti­za, no entan­to, que as mul­heres não se deix­am der­ro­tar facil­mente. Ela cita o exem­p­lo de Dan­dara dos Pal­mares, com­pan­heira do herói negro Zumbi dos Pal­mares, mor­to em 20 de novem­bro de 1965. “A ter­ra pela qual esta­mos lutan­do hoje é para aque­les que ain­da não nasce­r­am”.

Ancestralidade

No con­jun­to de diál­o­gos dos rep­re­sen­tantes quilom­bo­las, uma palavra diver­sas vezes pro­nun­ci­a­da com ênfase é “ances­tral­i­dade”. Para os líderes dos movi­men­tos, é como se fos­se uma força inter­na que os man­têm vivos em uma batal­ha por dire­itos.

Natalia Lima rep­re­sen­ta uma ger­ação de jovens dis­pos­tos a resi­s­tir e com­bat­er desigual­dades. Ela é do quilom­bo Boa Esper­ança, no municí­pio de Are­al, no cen­tro-sul flu­mi­nense, a cer­ca de 50 quilômet­ros do Rio de Janeiro.

“Hou­ve pes­soas lá atrás que lutaram muito, e a gente sabe da luta dos nos­sos ances­trais, nos­sos antepas­sa­dos. Hoje, ven­do o mun­do do jeito que está, não tem como aceitar. Somos um povo pre­to que tem que resi­s­tir a todo momen­to. A força da ances­tral­i­dade é uma coisa viva”.

População quilombola

De acor­do com o Cen­so 2022, o Brasil tem cer­ca de 1,33 mil­hão de quilom­bo­las, o que rep­re­sen­ta 0,66% da pop­u­lação brasileira. Desse uni­ver­so, 87% (1,07 mil­hão) vivem fora de ter­ritórios ofi­cial­mente recon­heci­dos. Há pre­sença de quilom­bo­las em 1,7 mil municí­pios brasileiros.

Os desafios dos quilom­bo­las não ter­mi­nam com a tit­u­lar­i­dade da ter­ra. A pres­i­dente da Asso­ci­ação das Comu­nidades Remanes­cente de Quilom­bos do Esta­do do Rio de Janeiro (Acquil­erj), Bia Nunes, acred­i­ta que não bas­ta haver a garan­tia de pro­priedade do ter­ritório.

Rio de Janeiro (RJ), 01/03/2024 - Bia Nunes, presidente da Acquilerj, fala durante o Seminário Quilombola Nego Bispo, na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, centro da cidade. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Bia Nunes, pres­i­dente da Acquil­erj, fala durante o Sem­i­nário Quilom­bo­la Nego Bis­po — Tânia Rêgo/Agência Brasil

“Depois que a gente con­segue con­quis­tar o títu­lo da ter­ra, tem que haver as políti­cas públi­cas para a comu­nidade”, defend­eu à Agên­cia Brasil. “A gente pre­cisa das políti­cas públi­cas den­tro da comu­nidade antes e depois do títu­lo da ter­ra”.

Bia lista como prin­ci­pais carên­cias políti­cas o aces­so à saúde públi­ca e a pre­sença da edu­cação quilom­bo­la den­tro dos ter­ritórios.

“Enquan­to a gente não con­seguir, den­tro da comu­nidade, faz­er esse tra­bal­ho de con­sci­en­ti­za­ção com as cri­anças e com os jovens, a gente não con­segue se for­t­ale­cer. Quan­do o jovem está den­tro da sala de aula e começa a se recon­hecer, a se per­tencer, fica muito mais fácil para ele enten­der depois, do lado de fora da comu­nidade, quem ele é”.

A Acquil­erj reúne mais de 50 comu­nidades tradi­cionais. Bia Nunes acres­cen­ta que a elab­o­ração de políti­cas não pode ser uma coisa impos­ta aos quilom­bo­las.

“Às vezes chega algu­ma políti­ca públi­ca que não atende a deter­mi­na­da neces­si­dade porque a coisa já foi for­ma­da por quem não sente [a neces­si­dade]. Quan­do é fei­ta por quem não sente, ela não nos atende”.

A Defen­so­ria Públi­ca do Rio de Janeiro con­duz um pro­gra­ma que real­iza vis­i­tas em comu­nidades tradi­cionais. Além de prestar assistên­cias cole­ti­vas aos quilom­bos, tam­bém há atendi­men­tos indi­vid­u­al­iza­dos para resolver questões como divór­cios, guar­da de cri­anças e emis­são de doc­u­men­tos, por exem­p­lo. Serviços sim­ples, mas que se tor­nam mais com­pli­ca­dos em comu­nidades muitas vezes dis­tantes de grandes cen­tros.

Representatividade

Mul­her negra, a defen­so­ra Daniele da Sil­va de Mag­a­l­hães coman­da a Coor­de­nado­ria da Pro­moção da Equidade Racial da Defen­so­ria. Ela pleit­eia que o poder públi­co ten­ha cada vez mais rep­re­sen­ta­tivi­dade, como o caso dela.

“A gente con­segue insti­tu­cionalizar a dor de 56% da pop­u­lação. O que eu faço é o que eu sin­to”, ressalta, fazen­do refer­ên­cia ao per­centu­al de pre­tos e par­dos na pop­u­lação brasileira.

“Às vezes, ao final do meu dia, eu estou exau­ri­da emo­cional­mente porque eu não falo de algo que é do out­ro. Eu falo de algo que é meu, é dos nos­sos, é dos meus”, com­ple­ta.

Rio de Janeiro (RJ), 01/03/2024 - Daniele da Silva Magalhães, coordenadora da promoção da equidade racial da Defensoria Pública, fala durante o Seminário Quilombola Nego Bispo, na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, centro da cidade. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Repro­dução: Daniele da Sil­va Mag­a­l­hães pleit­eia rep­re­sen­ta­tivi­dade no poder públi­co — Tânia Rêgo/Agência Brasil

Antirracismo

O Sem­i­nário Quilom­bo­la Nego Bis­po faz parte da cam­pan­ha 21 Dias de Ativis­mo Con­tra o Racis­mo, cri­a­da por ativista do movi­men­to negro com a mis­são de incen­ti­var a luta antir­racista em difer­entes con­tex­tos.

A cam­pan­ha foi ide­al­iza­da para lem­brar o Mas­sacre de Shaperville, bair­ro de Johanes­bur­go, na África do Sul. Em um protesto real­iza­do em 21 de março de 1960, jovens negros realizaram uma mar­cha con­tra a Lei do Passe, que os obri­ga­va a usar uma cader­ne­ta na qual esta­va deter­mi­na­do aonde eles pode­ri­am ir, assim como a obri­ga­to­riedade do ensi­no do africaner, a lín­gua do opres­sor. Foram 63 jovens mor­tos e 186 feri­dos.

Nego Bispo

Anto­nio Bis­po dos San­tos, o Nego Bis­po, mor­reu em 3 de dezem­bro do ano pas­sa­do, aos 63 anos. Nasci­do no Vale do Rio Berlen­gas, no Piauí, em um povoa­do onde hoje fica a cidade de Franc­inópo­lis, Nego Bis­po era con­sid­er­a­do um dos maiores int­elec­tu­ais quilom­bo­las do país, ten­do pub­li­ca­do dois livros Quilom­bos, mod­os e sig­nifi­ca­dos (2007) e Col­o­niza­ção, Quilom­bos: mod­os e sig­nifi­ca­dos (2015), além de vários arti­gos e poe­mas.

Além da ativi­dade int­elec­tu­al, Bis­po atu­ou na Coor­de­nação Estad­ual das Comu­nidades Quilom­bo­las do Piauí (CECOQ/PI) e na Conaq.

Edição: Aline Leal

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