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Violência de Estado persiste na democracia, alerta historiador

Repro­dução: © Bira Soares/UFRJ

Lucas Pedretti diz que sociedade tolera agressão aos negros e pobres


Publicado em 07/04/2024 — 14:50 Por Gilberto Costa — repórter da Agência Brasil — Brasília

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Esti­ma-se que na ditadu­ra mil­i­tar mor­reram 8.350 indí­ge­nas nas dis­putas de ter­ra e na implan­tação de grandes pro­je­tos em áreas flo­restais. No mes­mo perío­do, 1.200 cam­pone­ses tam­bém teri­am mor­ri­do em con­fli­tos semel­hantes. Segun­do relatório da Comis­são Nacional da Ver­dade, de 2011 a 2014, essas mortes foram cau­sadas pela ação do Esta­do autoritário ou por omis­são.

Ape­sar de con­starem em relatório ofi­cial, essas mortes são menos con­heci­das e por que não des­per­tam tan­ta atenção? Na avali­ação do his­to­ri­ador e sociól­o­go Lucas Pedret­ti, esse apaga­men­to se assemel­ha ao que acon­tece hoje em dia com as pes­soas mor­tas em oper­ações poli­ci­ais em comu­nidades e áreas per­iféri­c­as: a sociedade brasileira se impor­ta pouco com essas vidas.

“A gente dá mais val­or a algu­mas vidas do que out­ras e, por­tan­to, a gente cho­ra mais deter­mi­nadas mortes do que out­ras”, diz o estu­dioso.

Ele acres­cen­ta: “O que chamamos de democ­ra­cia tol­era e acei­ta a vio­lên­cia de Esta­do con­tra a juven­tude negra per­iféri­ca.”

Ess­es assun­tos são trata­dos no livro A tran­sição inacaba­da: vio­lên­cia de Esta­do e dire­itos humanos na rede­moc­ra­ti­za­ção, que Lucas Pedret­ti está laçan­do pela edi­to­ra Com­pan­hia das Letras.

A seguir, os prin­ci­pais tre­chos da entre­vista do autor à Agên­cia Brasil:

São Paulo (SP) 31/03/2024 - Ato 60 Anos do Golpe de 64 na frente do DOI-CODI em São Paulo.Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
Repro­dução: São Paulo (SP) — Ato 60 Anos do Golpe em frente ao DOI-CODI lem­bra víti­mas da ditadu­ra. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Agên­cia Brasil: Somos um país de história extrema­mente vio­len­ta: tive­mos genocí­dio indí­ge­na des­de a col­o­niza­ção, por 350 anos a explo­ração de pes­soas escrav­izadas foi o motor da econo­mia; e nos­sa mis­ci­ge­nação se deu com estupro de mul­heres indí­ge­nas e pre­tas escrav­izadas. Os indi­cadores de vio­lên­cia na ditadu­ra e na democ­ra­cia são coer­entes com esse lega­do?

Lucas Pedret­ti: Sem dúvi­da nen­hu­ma. Pre­cisamos olhar para o perío­do da ditadu­ra mil­i­tar como mais um capí­tu­lo dessa lon­ga história de vio­lên­cia, de bar­bárie. O livro ques­tiona exata­mente como e por que diante dessa história, em que a vio­lên­cia é a mar­ca fun­da­men­tal, ape­nas em torno de deter­mi­na­dos assun­tos hou­ve mobi­liza­ção capaz de levar o Esta­do a admi­tir a vio­lên­cia e pro­duzir, ain­da que de for­ma muito lim­i­ta­da, políti­cas de recon­hec­i­men­to com o fun­ciona­men­to da Comis­são de Mor­tos e Des­pare­ci­dos Políti­cos [Lei nº 9.140/1995], Comis­são de Anis­tia [Lei nº 10.559/2002] e Comis­são Nacional da Ver­dade [Lei nº 12.528/2011].

São momen­tos úni­cos da história do Brasil em que o Esta­do assume que vio­lou dire­itos e ten­ta de algu­ma maneira reparar. Mas por que a gente não tem uma comis­são da ver­dade indí­ge­na, ou sobre a escravidão negra ou sobre a vio­lên­cia poli­cial pós-1988? É evi­dente, como ten­to mostrar no livro, que raça e classe pesam nis­so. Os alvos da vio­lên­cia políti­ca da ditadu­ra recon­heci­da pelo Esta­do são his­tori­ca­mente mais pro­te­gi­dos: a juven­tude bran­ca, uni­ver­sitária, de classe média ou, muitas vezes, fil­hos da elite.

Agên­cia Brasil: Você escreve no livro que “para casos como a Chaci­na de Acari [1990] não hou­ve comis­sões da ver­dade, pro­gra­mas de reparação ou políti­cas de memória. Pelo con­trário, a respos­ta da Nova Repúbli­ca foi aumen­to das for­mas de vio­lên­cia do Esta­do”. A sociedade brasileira é mais sen­sív­el à vio­lên­cia políti­ca do que à vio­lên­cia urbana cotid­i­ana?

Lucas Pedret­ti:  A gente dá mais val­or a algu­mas vidas do que out­ras e, por­tan­to, a gente cho­ra mais deter­mi­nadas mortes do que out­ras. A ideia de vio­lên­cia políti­ca, tal como foi con­struí­da na rede­moc­ra­ti­za­ção, teve a função de per­mi­tir a rein­te­gração de mil­i­tantes da oposição. Esse dis­cur­so foi capaz de reabil­i­tar politi­ca­mente sujeitos que o regime mil­i­tar chama­va de sub­ver­sivos e ter­ror­is­tas.

Mas esse dis­cur­so man­tinha uma cer­ta divisão entre uma vio­lên­cia tol­eráv­el e uma vio­lên­cia intol­eráv­el. Quan­do a vio­lên­cia do Esta­do atinge uma juven­tude bran­ca uni­ver­sitária gera repú­dio porque extrap­o­la aqui­lo que a sociedade brasileira con­sid­era nor­mal, como a morte de um jovem negro na per­ife­ria ou um mas­sacre indí­ge­na.

Agên­cia Brasil: Recen­te­mente, foi encer­ra­da Oper­ação Verão, na Baix­a­da San­tista, com 56 pes­soas mor­tas pela Polí­cia Mil­i­tar de São Paulo. Essas oper­ações espe­ci­ais das polí­cias, feitas em difer­entes esta­dos, têm algu­ma semel­hança com a repressão políti­ca?

Lucas Pedret­ti: Todas essas oper­ações poli­ci­ais estão anco­radas numa lóg­i­ca na qual deter­mi­nadas pes­soas e deter­mi­na­dos ter­ritórios da cidade não são dig­nos dos dire­itos, da cidada­nia e das pro­teções con­sti­tu­cionais. Diante de uma pes­soa cuja humanidade não se recon­hece e é con­sid­er­a­da uma ameaça, nós autor­izamos social­mente que a polí­cia vá lá, tor­ture, pren­da e mate arbi­trari­a­mente.

A ditadu­ra esta­b­elece mecan­is­mos insti­tu­cionais, jurídi­cos e legais que seguem até hoje e que dão respal­do à situ­ação das polí­cias. Os autos de resistên­cia, por exem­p­lo, são insti­tuí­dos durante a ditadu­ra. A atribuição de uma Justiça Mil­i­tar para jul­gar mil­itares acu­sa­dos de come­ter crimes con­tra civis é uma cri­ação da ditadu­ra. A própria orga­ni­za­ção insti­tu­cional das polí­cias mil­itares, como esse cor­po se fun­ciona como força aux­il­iar do Exérci­to, é tam­bém uma her­ança da ditadu­ra mil­i­tar.

Para além dess­es mecan­is­mos jurídi­cos, insti­tu­cionais e admin­is­tra­tivos, existe algo do pon­to de vista dis­cur­si­vo. A ditadu­ra foi o momen­to em que a ideia de que a mão pesa­da do Esta­do deve se faz­er valer — inde­pen­dente das leis e garan­tias con­sti­tu­cionais — e de que as polí­cias devem atu­ar autono­ma­mente — sem nen­hum tipo de con­t­role exter­no, sem nen­hum tipo de sub­mis­são ao poder políti­co civ­il — tem como con­tra­parti­da a garan­tia da impunidade de poli­ci­ais.

É impor­tante diz­er que a nos­sa democ­ra­cia foi capaz de apro­fun­dar todos ess­es mecan­is­mos. Isso é algo que pre­cisamos pen­sar. O que chamamos de democ­ra­cia tol­era e acei­ta a vio­lên­cia de Esta­do con­tra a juven­tude negra per­iféri­ca, talvez hoje de for­ma mais grave do que como acon­te­cia no próprio regime autoritário.

Agên­cia Brasil: A impunidade e a maneira como a polí­cia se com­por­ta hoje são sinais da atu­ação autôno­ma das polí­cias e de per­da de con­t­role dos gov­er­nos estad­u­ais?

Lucas Pedret­ti: É difí­cil diag­nos­ticar de for­ma defin­i­ti­va que todos os gov­er­nos estad­u­ais perder­am o con­t­role das polí­cias. O que é pos­sív­el diz­er é que esta­mos diante de um movi­men­to em que no lugar das cor­po­rações poli­ci­ais se sub­me­terem a um con­t­role rígi­do civ­il — como seria esper­a­do em um regime democráti­co, uma vez que eles são os profis­sion­ais que usam a vio­lên­cia cujo monopólio legí­ti­mo o Esta­do detém – vemos um movi­men­to claro de poli­ti­za­ção dessas cor­po­rações, com apre­sen­tação de can­didatos e atu­ação políti­co-par­tidária.

A semente dis­so é não só a impunidade, sem dúvi­da fun­da­men­tal, mas tam­bém a autono­mia com que essas forças poli­ci­ais oper­am. Essa mis­tu­ra abre cam­in­ho, por exem­p­lo, para que den­tro das forças poli­ci­ais se mul­ti­pliquem esquadrões da morte, gru­pos de exter­mínio e milí­cias.

Agên­cia Brasil: A autono­mia e a maneira vio­len­ta e sem con­t­role de agir tam­bém fazem com que essa polí­cia pos­sa ser coop­ta­da pelo próprio crime?

Lucas Pedret­ti: A gente apren­deu isso lá na soci­olo­gia com os tra­bal­hos do [cien­tista social capix­a­ba] Michel Misse. Sem­pre que tiv­er um mer­ca­do ile­gal operan­do estará jun­to um mer­ca­do de pro­teção, como ocorre com o mer­ca­do de dro­gas e com o trá­fi­co de armas, onde cir­cu­la val­ores absur­dos de din­heiro. Esse mer­ca­do pre­cisa com­prar sua segu­rança, com­prar sua pro­teção. Quem é mel­hor para faz­er se não os próprios agentes do Esta­do?

Agên­cia Brasil: Em 2010, o Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al rejeitou a ação apre­sen­ta­da pela Ordem dos Advo­ga­dos do Brasil que ques­tion­a­va a apli­cação da Lei de Anis­tia sobre os agentes do Esta­do que praticaram crimes hedion­dos, como tor­tu­ra, durante a ditadu­ra mil­i­tar. A impunidade daque­les agentes parece uma cláusu­la pétrea. Por que a democ­ra­cia reesta­b­ele­ci­da há quase 40 anos não con­segue alter­ar isso?

Lucas Pedret­ti: Essa é uma per­gun­ta que nos persegue. Quan­do tiver­mos uma respos­ta exa­ta, talvez con­sig­amos con­stru­ir cam­in­hos para sair desse dile­ma. É impor­tante pen­sar des­de o iní­cio da nos­sa história. O Brasil tem uma lon­ga tradição de tran­sições inacabadas, citan­do o títu­lo do livro. Pas­samos pelos momen­tos históri­cos sem lidar com os trau­mas, sem elab­o­rar e pro­mover medi­das para reparar as questões pen­dentes que foram deix­adas, e sem per­mi­tir que os con­fli­tos sejam dev­i­da­mente proces­sa­dos.

À luz da ideia de que somos um país pací­fi­co, um país em que tudo se resolve na base da con­cil­i­ação, não lidamos cor­re­ta­mente com o pas­sa­do.

Agên­cia Brasil: Avançan­do no tem­po, você teme que o espíri­to de con­cil­i­ação nos assom­bre no jul­ga­men­to dos respon­sáveis pelo 8 de janeiro?

Lucas Pedret­ti:  Eu não acho que a gente pos­sa descar­tar a pos­si­bil­i­dade de uma mudança sig­ni­fica­ti­va na con­jun­tu­ra políti­ca que leve a algum tipo de anis­tia a Jair Bol­sonaro e aos mil­itares que oper­aram na con­spir­ação golpista e no 8 de janeiro. Mas eu acho que o cenário mais prováv­el hoje é a respon­s­abi­liza­ção crim­i­nal dess­es indi­ví­du­os.

Isso não sig­nifi­ca, no entan­to, que esta­mos nos livran­do do espíri­to de con­cil­i­ação. Pelo con­trário. Isso tem fica­do muito claro nas falas dos coman­dantes mil­itares e na fala do min­istro da Defe­sa José Múcio de que ‘os envolvi­dos no 8 de janeiro e na con­spir­ação golpista foram CPFs’ e que pre­cisamos ‘res­guardar o CNPJ’. No lim­ite está sendo dito que ‘não hou­ve golpe no 8 de janeiro porque as Forças Armadas não quis­er­am’. Creio que o espíri­to de con­cil­i­ação aí se impõe de novo.

Edição: Car­oli­na Pimentel

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