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Vítimas de tortura na ditadura pedem memória e providências

Repro­dução: © Vis­it Recife/ Divul­gação

Dia Internacional de Apoio é celebrado nesta segunda-feira


Pub­li­ca­do em 26/06/2023 — 07:56 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

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A cam­painha tocou no aparta­men­to 31. O estu­dante paulis­tano Adri­ano Dio­go, de 23 anos, esta­va cansa­do. Estu­dante de geolo­gia na Uni­ver­si­dade de São Paulo (USP), ele, naque­le dia, esta­va exten­u­a­do depois de cruzar a cidade e chega­do de mais uma jor­na­da como pro­fes­sor de ciên­cias em uma esco­la secun­darista. Andou até a por­ta. Ao abrir, encon­trou o pesade­lo. Ele não esper­a­va o que acon­te­ceria a par­tir daque­le 17 de março de 1973. Histórias como a de Adri­ano têm mais um espe­cial momen­to de reflexão e memória nes­ta segun­da (26 de jun­ho), Dia Inter­na­cional de Apoio às Víti­mas de Tor­tu­ra.

Tudo está níti­do na memória de Adri­ano Dio­go, hoje aos 74 anos de idade. “Primeiro, uma coron­ha­da com o cabo da metral­hado­ra no lado dire­ito do olho”, lem­brou em entre­vista à Agên­cia Brasil. Ele recor­da que foi sendo arras­ta­do aos gri­tos pela esca­da, por mil­itares dis­farça­dos. Havi­am chega­do em uma cam­in­honete com pin­tu­ra fal­sa de um jor­nal da cidade. Saíram em um Opala verde. Adri­ano assus­tou-se com o ódio dos agentes.

“Nós vamos te matar, ter­ror­ista”. “Onde estão as armas?”. “Maldito”

Do aparta­men­to na Mooca (zona leste de São Paulo), os mil­itares levaram o uni­ver­sitário por 10 quilômet­ros, até o Com­plexo do Cen­tro de Oper­ações de Defe­sa Inter­na (DOI-Codi), na Vila Mar­i­ana, onde fun­ciona­va a Oper­ação Ban­deirante (Oban), um cen­tro de repressão políti­ca que desem­bo­cou em um espaço de tor­tu­ra e assas­si­natos durante a ditadu­ra mil­i­tar no Brasil.

90 dias na solitária

As difer­entes vio­lên­cias que se seguiram àquele dia em que a cam­painha tocou, incluin­do os 90 dias em uma solitária, depois 45 no pré­dio do Depar­ta­men­to de Ordem Políti­ca e Social (Deops), e mais um ano e meio no Presí­dio do Hipó­dro­mo, deixaram mar­cas pro­fun­das no homem. Mas não deixaram jamais os ideais e o ativis­mo. “Emb­o­ra eu fos­se bem jovem, des­de o dia em que saí da cadeia, há 50 anos, eu fazia o que faço hoje. Vou em cadeias, em espaços de inter­nação de menores, em del­e­ga­cia. Quan­do pes­soas de movi­men­tos soci­ais são pre­sas, bus­co saber o que acon­te­ceu”.

Daque­les dias de dores diver­sas, ele se lem­bra com detal­h­es dos momen­tos. Inclu­sive que um dos algo­zes e dos mais vio­len­tos era um tal de major Tibir­içá, codi­nome do chefe do DOI-CODI à época, o coro­nel Car­los Alber­to Bril­hante Ustra, o primeiro mil­i­tar a ser recon­heci­do como tor­tu­rador pela Justiça brasileira no ano de 2008.

Assista a depoimento de Adriano Diogo à Comissão Estadual da Verdade

Foi Ustra quem rece­beu Adri­ano Dio­go no com­plexo da Oper­ação Ban­deirante. Além de coman­dar a vio­lên­cia físi­ca, o mil­i­tar, em difer­entes ocasiões, mostra­va fotos de ami­gos e cole­gas assas­si­na­dos e autop­si­a­dos em demon­strações de vio­lên­cia psi­cológ­i­ca. “Con­te o que você viu aos seus ami­gos na cela”, provo­ca­va.

Adri­ano Dio­go desco­briu na cadeia a morte de um grande ami­go, nos dias seguintes ao que chegou ao DOI/Codi o líder estu­dan­til  Alexan­dre Van­nuc­chi Leme, aos 22 anos de idade, tam­bém estu­dante de geolo­gia na USP. Para o ami­go Adri­ano, Alexan­dre era o “Min­ho­ca”, apeli­do dos tem­pos da fac­ul­dade. “Para ten­tar apa­gar as mar­cas de tor­tu­ra con­tra o Min­ho­ca, eles levaram o cor­po para fora da Oban e sim­u­la­ram atro­pela­men­to com um cam­in­hão”.

Ninguém acred­i­tou na fraude. Taman­ha foi a reper­cussão que o arce­bis­po de São Paulo, Dom Paulo Evaris­to Arns, orga­ni­zou uma mis­sa no dia 30 de março em memória do estu­dante. A reper­cussão foi grande. “O Ustra ficou muito ner­voso. Lev­ou todos os pre­sos para o pátio e bat­er­am na gente de todas as for­mas”, recor­da Adri­ano Dio­go.

Enquan­to Ustra esteve na chefia, durante 40 meses, hou­ve 40 mortes. Além dis­so, chegou, em média, uma denún­cia de tor­tu­ra a cada 60 horas, segun­do reg­istrou a Comis­são da Ver­dade. Out­ro momen­to mar­cante, em 1973, foi aque­le em que Gilber­to Gil can­tou a músi­ca Cálice (com­pos­ta em parce­ria com Chico Buar­que) na USP, em primeira mão, para dezenas de estu­dantes. “Ele teve mui­ta cor­agem real­mente”, con­sid­era.

Retomar a vida

Depois de quase dois anos, Adri­ano Dio­go saiu da cadeia. “Fui bus­car o diplo­ma lá na geolo­gia e retomar a vida”. Ele fez car­reira como geól­o­go e pesquisador. Foi dep­uta­do e até pre­sid­iu a Comis­são da Ver­dade na Assem­bleia Leg­isla­ti­va de São Paulo. Um prob­le­ma, porém, foi que as recomen­dações do relatório ficaram ape­nas no papel. O relatório final foi entregue à sociedade em março de 2015. depois de três anos de tra­bal­ho.

Um dos capí­tu­los é de “Mor­tos e Desa­pare­ci­dos”, com 165 casos inves­ti­ga­dos, inclu­sive a do ami­go Alexan­dre Van­nuc­chi Leme . “Nós fize­mos uma série de recomen­dações ao Esta­do brasileiro e não foram aten­di­das (con­fi­ra aqui o relatório). Para você ter uma ideia, o Brasil é sig­natário do Pro­to­co­lo de Istam­bul de com­bate à tor­tu­ra. Sabe quan­tos comitês de com­bate à tor­tu­ra têm no Brasil, além do nacional? Só um (no Rio de Janeiro)”, lamen­ta.

Na sex­ta (23), o atu­al gov­er­no reativou o Sis­tema Nacional de Pre­venção e Com­bate à Tor­tu­ra. Uma reunião mar­ca­da para o dia 21 de agos­to, data que mar­ca os dez anos da lei que criou esse sis­tema, vai esta­b­ele­cer um plano de tra­bal­ho e de atu­ação.

Marcas registradas

relatório da Comis­são Nacional da Ver­dade (CNV) trouxe 29 recomen­dações e a maio­r­ia ficou tam­bém somente no papel, iden­ti­fi­cou um relatório do Insti­tu­to Wladimir Her­zog.

Ape­nas duas recomen­dações foram aten­di­das pelo poder públi­co, avaliou a enti­dade. A revo­gação da Lei de Segu­rança Nacional e a intro­dução da audiên­cia de custó­dia, para pre­venção da práti­ca da tor­tu­ra e de prisão ile­gal, foram as exceções.

Para a coor­de­nado­ra do relatório, a his­to­ri­ado­ra Gabrielle Abreu, o sen­ti­men­to das pes­soas tor­tu­radas no Brasil, é mes­mo esse de impunidade. “A vio­lên­cia e a impunidade, infe­liz­mente, são mar­cas reg­istradas no Brasil. Vimos ocor­rer no perío­do da escravidão, por exem­p­lo, quan­do mil­hões de home­ns e mul­heres negros foram escrav­iza­dos”, afir­mou.

O relatório, segun­do ela, tem a final­i­dade de estim­u­lar uma reflexão ver­dadeira e críti­ca sobre o que foi a ditadu­ra e out­ros perío­dos de grave vio­lação de dire­itos humanos. A bus­ca por não deixar esque­ci­das essas histórias é fun­da­men­tal, disse a his­to­ri­ado­ra. Além dis­so, há no enten­der dela, invis­i­bil­i­dade e apaga­men­tos de tor­turas e mortes de difer­entes gru­pos indí­ge­nas, quilom­bo­las, ribeir­in­hos, pop­u­lações mais pobres sub­meti­das aos des­man­dos.

“Há história descon­heci­das da ditadu­ra, como nas fave­las. É uma mon­tan­ha de vio­lações de dire­itos humanos que foram apa­gadas”.

 

Os dados do relatório mostram não somente ter havi­do recomen­dações da CNV não real­izadas (total de 14), mas tam­bém retro­ces­sos (sete). Esse é o caso da reco­comen­dação da “cri­ação de mecan­is­mos de pre­venção e com­bate à tor­tu­ra”.

Tortura aos 16 anos

Voltar ao pas­sa­do, porém, é recon­hecer histórias de vio­lên­cias inad­mis­síveis. No dia 16 de abril de 1971, Ivan Soares, com ape­nas 16 anos de idade, foi cap­tura­do jun­to com o pai, o operário Joaquim, e lev­a­do para as insta­lações do DOI-Codi, em São Paulo. Pai e fil­ho par­tic­i­pavam do Movi­men­to Rev­olu­cionário Tiradentes.

Brasília (DF), 22.06.2023 - Dia de Apoio às Vítimas da Tortura. Ivan Seixas. Foto: Arquivo Pessoal
Repro­dução: Brasília (DF), 22.06.2023 — Dia de Apoio às Víti­mas da Tor­tu­ra. Ivan Seixas. Foto: Arqui­vo Pes­soal — Arqui­vo pes­soal

 

“Eles nos tor­tu­raram durante dois dias segui­dos. Eles mataram meu pai e eu con­tin­uei pre­so. Pren­der­am tam­bém a min­ha mãe (uma pro­fes­so­ra) e min­has irmãs. Elas foram espan­cadas, Uma delas foi estupra­da”.

 

Menor de idade, Ivan ficou nas mãos da ditadu­ra durante quase seis anos sem ser proces­sa­do ou con­de­na­do. “Os mil­itares anun­cia­ram que ele tin­ha mor­ri­do em um supos­to tiroteio com as forças de repressão”. Ivan era estu­dante do então giná­sio. “A gente tin­ha a vida de tra­bal­hadores pobres. Nasci numa favela em Por­to Ale­gre onde não tin­ha nada. Não tin­ha água encana­da, luz, ônibus,esgoto, esco­las. Tudo era muito difí­cil”.

Confira depoimento à OAB-RJ

Ele expli­ca que os moradores dessa comu­nidade de Vila Jardim  lutavam por mel­hores condições de vida. “Des­de que me enten­di por gente eu vi as lutas das pes­soas que são da classe tra­bal­hado­ra, ten­tan­do sair da condição de ser pisa­do pelo sis­tema cap­i­tal­ista”.

Os últi­mos três anos de cadeia Ivan cumpriu em um presí­dio de segu­rança máx­i­ma, que foi a Casa de Custó­dia e Trata­men­to de Taubaté. Ele era o úni­co pre­so políti­co e con­vivia com os pre­sos e pacientes psiquiátri­cos.

Ivan saiu da prisão em agos­to de 1976, dis­pos­to a recomeçar a vida. Mas as perseguições não ces­saram. Uma vez por sem­ana, ele pre­cisa­va se apre­sen­tar na audi­to­ria mil­i­tar. “Eu era segui­do todos os dias, 24 horas por dia. Eu ia estu­dar, tra­bal­har. Mas sem­pre com a pre­sença dela, dessas fig­uras exe­cráveis por per­to”.

“Eu descia do ônibus e tin­ha que cam­in­har a pé até a esco­la. Em um car­ro, eles pas­savam me xin­gan­do fazen­do piad­in­ha. Diziam para eu cor­rer para eles treinarem tiro”. A tor­tu­ra era tam­bém do lado de fora. “Des­de o momen­to em que eu esta­va sendo tor­tu­ra­do, tin­ha abso­lu­ta noção de que vivia um proces­so históri­co, Eu me man­tive pelo fator ide­ológi­co”. Hoje, ele mora na cidade de Foz do Iguaçu (PR).

Brasília (DF), 22.06.2023 - Dia de Apoio às Vítimas da Tortura. Ivan Seixas. Foto: Arquivo Pessoal
Repro­dução: Brasília (DF), 22.06.2023 — Dia de Apoio às Víti­mas da Tor­tu­ra. Ivan Seixas. Foto: Arqui­vo Pes­soal — Arqui­vo pes­soal

Hoje, ele con­sid­era fun­da­men­tal a apli­cação das recomen­dações da Comis­são Nacional da Ver­dade. ”Nós rev­e­lam­os os crimes da ditadu­ra. E a gente vai con­tin­uar lutan­do”.

Edição: Graça Adju­to

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