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Viva Maria, 40 anos: a agricultora que planta poesias

Repro­dução: © Foto Dri­ca

Conheça a história da Kennya Silva, a Maria Quarqué


Pub­li­ca­do em 14/09/2021 — 07:20 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

Morado­ra da comu­nidade Tupã, de mais de 100 famílias na cidade de Xin­guara (PA), a tra­bal­hado­ra rur­al Ken­nya Sil­va, hoje com 43 anos, comem­o­rou muito quan­do, em 2008, a ener­gia elétri­ca chegou à casa dela. “Era uma con­quista imen­su­ráv­el ter luz em casa”. Uma das primeiras providên­cias foi sat­is­faz­er um son­ho anti­go da família: alu­gar um filme no cen­tro de Xin­guara (a 15 quilômet­ros de dis­tân­cia) para assi­s­tir em casa. Seria o dia de um “luxo” que todos estavam esperan­do.

- Mas não vou poder alu­gar pra você — disse a dona da locado­ra para espan­to de Ken­nya.

- Você mora em área rur­al. Se você não voltar, como vou te encon­trar?

E o endereço não foi aceito. Revolta­da, saiu pela rua e chorou. “Foi tão grande a min­ha indig­nação que andei por um tem­po pen­san­do naqui­lo, muito triste. Eu pen­sei que essa mul­her que me negou o aluguel do filme só se ali­men­ta porque eu tra­bal­ho na roça. As pes­soas na cidade comem porque a gente plan­ta”.

Era muito tris­teza e revol­ta. O sen­ti­men­to a lev­ou até o cader­no em que se habitu­ou a escr­ev­er poe­sias, o que faz des­de a ado­lescên­cia.

Ken­nya resolveu retomar um tex­to anti­go que havia começa­do a escr­ev­er havia oito anos. “Uma Maria Quar­qué”. Ela não que­ria mais assi­s­tir ao filme. Que­ria mes­mo era escr­ev­er. Traduzir o que aque­le instante sig­nifi­ca­va. Mais do que isso: aque­le desabafo não pode­ria ficar somente no cader­no. Resolveu man­dar para o pro­gra­ma Viva Maria, da Rádio Nacional da Amazô­nia. “Eu man­dei a poe­sia. Para min­ha sur­pre­sa, a Mara Régia (jor­nal­ista e apre­sen­ta­do­ra do Viva Maria) não só leu a poe­sia, como tam­bém declam­ou com o fun­do musi­cal de Maria, Maria (de auto­ria de Mil­ton Nasci­men­to).”

O pro­gra­ma Viva Maria é parte da vida de Ken­nya Sil­va. Des­de a infân­cia, inclu­sive, ela acom­pan­ha­va, com a família, a pro­gra­mação da Rádio Nacional da Amazô­nia. O rad­in­ho de pil­ha era colo­ca­do em posições estratég­i­cas para que a voz dos apre­sen­ta­dores nun­ca fal­has­sem.

Repro­dução: Ouvinte na Amazô­nia escu­tan­do rádio — TV Brasil

“Seria um son­ho que a Mara Régia lesse min­ha poe­sia, Mas ela fez mais do que ler”.

Ao rece­ber a car­ta, a pro­dução do pro­gra­ma procurou Ken­nya para uma entre­vista. Os pedi­dos de entre­vis­tas chegavam tam­bém pelo ape­lo das ouvintes. Todos que­ri­am con­hecer quem havia cri­a­do aque­les ver­sos.

Eu sô uma Maria quar­qué.
Uma dessas muié, qui vivi na roça,
qui via­ja di car­roça, di cav­a­lo ou a pé.

Eu sô uma Maria quar­qué.
Dessas que acor­da cedin, faz o bolo i o café, cui­da da casa du quin­tá,
dus bichin, dos ani­má, qui sus­ten­ta o brasí di pé.

Eu sô uma Maria quar­qué
qui tira o leite da vaquin­ha, cui­da das pran­tas i das gal­in­has, sô maria muié de fé. Sô maria forte, sô du su ou sô do nor­ti num impor­ta o lugar, in quar­qué par­ti du prane­ta ixisti uma Maria cuma eu, qui luta cum fé i cor­a­gi na lida qui Deus lhe deu.

Eu Sô uma Maria quar­qué
Num sei falar ingrêz, num inten­do di moda, uso xita i xadrez,
Sô difer­ente di ocês, mas isso num mi inco­mo­da.

Eu sô uma Maria quar­qué
di vêz inguan­to vô na cidade, inté cum­prien­do seu valô.
mais é aqui no mato qui ten­ho feli­ci­dade, sô boni­ta do meu jeito tam­bém ten­ho vaidade.

Eu sô uma Maria quar­qué
Sô da roça sim sin­hô, sô caipi­ra cum orguio, mas tra­baio cum amor.

Eu sô uma Maria quar­qué.
qui só usei esse papé, pra chamar sua atenção pra faz­er ocê oiá, cum o zói du coração pras tan­tas Marias quais­quer, que vivem de real­i­dade, que retratam o amor à vida e a fé, que só dese­jam ser respeitadas ao lon­go dessa jor­na­da no seu ranch­in­ho de sapé.

Escute aqui a poe­sia na ínte­gra

Inspiração feminina

Maria Quar­qué, de Ken­nya, fez suces­so. “A par­tir desse momen­to, foi um divi­sor de águas na min­ha vida. Tomou um sen­ti­do que eu não imag­i­na­va. E pen­sar que, na época, eu tin­ha para­do na quin­ta série do ensi­no fun­da­men­tal”.

A poe­sia de Ken­nya inspirou out­ras mul­heres da região, como uma sen­ho­ra que, ao ouvir a poe­sia, decid­iu per­cor­rer 18 km de bici­cle­ta para estu­dar. “Quan­do eu escutei aqui­lo, foi um sus­to. Como eu estou inspi­ran­do out­ras pes­soas e eu mes­ma não voltei? Então, voltei pra esco­la e escrevi pra Mara Régia de novo”.

A nova car­ta de Ken­nya repetiu o suces­so e mais de dez pes­soas escrever­am para a pro­dução do Viva Maria, garan­ti­n­do que voltari­am para a esco­la.

Novos começos

Era só o começo de uma revi­ra­vol­ta. Fez suple­ti­vo e, depois, ingres­sou na fac­ul­dade. O cír­cu­lo vir­tu­oso cresceu. Ken­nya pas­sou a ser pre­mi­a­da em con­cur­sos de poe­sia.

“A história tem a mar­ca do Viva Maria. Gan­hei o prêmio Mul­heres Rurais, Mul­heres com Dire­itos. Não imag­i­na­va que a min­ha história fos­se tão impor­tante para out­ras pes­soas. Hoje eu rep­re­sen­to as mul­heres tra­bal­hado­ras rurais no Brasil em con­fer­ên­cias inter­na­cionais da Améri­ca Lati­na”.

Ingres­sou na fac­ul­dade de letras, virou tuto­ra de ofic­i­na de poe­sia. Após a primeira exper­iên­cia uni­ver­sitária, resolveu faz­er o cur­so de filosofia. Está prestes a con­cluir tam­bém. Ela não para de escr­ev­er. Son­ha pub­licar o primeiro livro. São mais de 500 poe­sias que tratam sobre a vida das mul­heres, o tra­bal­ho no cam­po e as próprias exper­iên­cias. Os tex­tos são escritos primeiro nos cader­nos e depois dig­i­ta­dos no com­puta­dor de casa.

Ken­nya Sil­va com o diplo­ma de grad­u­ação em Letras — Ken­nya Sil­va / Arqui­vo pes­soal

Hoje, Ken­nya, pro­fes­so­ra da rede munic­i­pal, está cedi­da para a Casa de Cul­tura de Xin­guara. Como tra­bal­hado­ra rur­al, cul­ti­va fru­tas como gravi­o­la, cupuaçu, acero­la e tamarindo. A família con­gela e vende a pol­pa de fru­ta.

A jor­nal­ista e apre­sen­ta­do­ra Mara Régia chegou a ir até a casa de Ken­nya de sur­pre­sa. Foi emo­cio­nante para a poe­t­i­za. Jun­to da profis­sion­al do pro­gra­ma Viva Maria, esta­va a ouvinte e tra­bal­hado­ra rur­al Alzi­ra Soares, de 69 anos de idade, que vive na cidade de Tucumã, há 36 anos. Ela disse que não havia nem tira­do doc­u­men­tos não fos­se o pro­gra­ma Viva Maria, entu­si­as­ma­da com a história da Maria Quar­qué.

A vida na roça para Alzi­ra é des­de que ela se entende por gente. “Quan­do encon­trei a Mara, me emo­cionei muito. Que­ria con­tar para ela que con­heci mais sobre os meus doc­u­men­tos, mas tam­bém assun­tos da saúde da mul­her. Há 30 anos, eu não sabia o que eram [os exam­es] papan­i­co­lau e mamo­grafia. Além dis­so, pas­sou a fre­quen­tar a esco­la com 42 anos de idade. Mon­ta­va no cav­a­lo e ia por 6 quilômet­ros”.

Repro­dução: Mara Régia vista Ken­nya Sil­va em Xin­guara (PA). — TV Brasil

São essas inspi­rações que fazem Ken­nya escr­ev­er. “Quan­do me per­gun­tam, por que eu, uma tra­bal­hado­ra rur­al, faço poe­sia… eu respon­do que isso não me dá din­heiro, mas me dá emoções que o din­heiro não com­pra.”

Ouça aqui pod­cast sobre o Viva Maria Ano 40

Edição: Alessan­dra Esteves

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