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Viva Maria, 40 anos: a parteira que ilumina o interior do Acre

Repro­dução: © Igo Estrela

Com 306 partos, Maria Zenaide é a mistura do popular com o científico


Pub­li­ca­do em 13/09/2021 — 07:20 Por Luiz Clau­dio Fer­reira — Repórter da Agên­cia Brasil — Brasília

Qua­tro horas da man­hã. O silên­cio da madru­ga­da, que era acom­pan­hado ape­nas pelo som da chu­va forte, foi inter­rompi­do pelas bati­das na por­ta da parteira Maria Zenaide de Souza Car­val­ho, na cidade de Marechal Thau­mar­tu­go (AC).

Era um ami­go pedin­do auxílio para que ela aju­dasse em um nasci­men­to del­i­ca­do. O cam­in­ho era lon­go. Pelo menos duas horas a pé pela flo­res­ta e sus­tos no per­cur­so. “Pisei em uma cobra, ela inchou, fez barul­ho e, ao ten­tar cor­rer, per­di a poron­ga. Não tin­ha nada para alu­mi­ar o cam­in­ho”, lem­bra a parteira. Poron­ga é a luminária impro­visa­da abaste­ci­da com querosene que tra­bal­hadores usam no serin­gal para enx­er­gar o que está na frente.

Pas­sou a se agar­rar nas árvores e a con­tar com a luz da lua.

Quan­do chegou à casa da ges­tante, viu que ela esta­va com dor. “Ela esta­va sem força e começou a des­ma­iar. O mari­do des­maiou. Antes, pediu: ‘Salve a min­ha mul­her’. Nós não tra­bal­hamos com bis­turi. Usei os dedos para aumen­tar o espaço. E a cri­ança nasceu. Foi emo­cio­nante. Disse a eles que ninguém mor­re­ria. E deu tudo cer­to.”

O dia deixou recor­dações fortes e ela lem­bra como se fos­se ontem: 22 de janeiro de 1979. Maria Zenaide só tin­ha 23 anos. Mas, por incrív­el que pareça, a história dela como parteira na flo­res­ta começou muito antes: quan­do tin­ha ape­nas 10 anos de idade. Fez o par­to de uma tia. “Não tin­ha pos­to ou hos­pi­tal. E a gente que­ria se aju­dar.”

Repro­dução: Flo­res­ta Amazôni­ca — Marce­lo Camargo/Agência Brasil

Des­de então, já foram 306 par­tos. A maio­r­ia abso­lu­ta no inte­ri­or do Acre. Hoje, Maria Zenaide vive em Rio Bran­co. Mudou para a cap­i­tal depois que sofreu vio­lên­cia sex­u­al no inte­ri­or. Agre­di­da, deixou de enx­er­gar com o olho esquer­do.

Em out­ro par­to mar­cante em sua tra­jetória, ela recor­da a ocasião em que andou por oito horas. “A cri­ança e a família não tin­ham uma cama ou uma roupa para cobrir. Às vezes, eu chora­va diante dessas desigual­dades.”

Eu posso ser como ela

Suas histórias ficaram famosas na região e ela escreveu para o pro­gra­ma Viva Maria, da Rádio Nacional da Amazô­nia. “Lá no serin­gal, o rádio é o preferi­do. Escu­to o pro­gra­ma faz 40 anos. Nós parteiras do Acre e da Região Norte nos comu­ni­camos por ele. O pro­gra­ma nos uniu.” Ela expli­ca que a jor­nal­ista Mara Régia, a apre­sen­ta­do­ra do pro­gra­ma, sem­pre a inspirou.

“Nós não tín­hamos voz nem voto. Aí quan­do eu a ouvia, eu pen­sa­va: eu pos­so ser como ela. Ela é mul­her e nós tam­bém. Me sen­tia rep­re­sen­ta­da por ela. Quase todas as mul­heres se sen­ti­ram.”

Zenaide expli­ca que o tra­bal­ho de parteira é vol­un­tário e é feito por causa do amor “que temos uns aos out­ros”. Mas Zenaide que­ria mais. Foi estu­dar em Per­nam­bu­co, fez cur­so de aux­il­iar de enfer­magem “para mis­tu­rar o pop­u­lar com o cien­tí­fi­co” e chegou a tra­bal­har em um pos­to de saúde de Marechal Thau­matur­go. “Gan­ha­va um din­heiro que sus­ten­ta­va a min­ha família. Mas, depois do estupro, per­di meu tra­bal­ho e mudei de lá”. Zenaide con­seguiu, depois, se aposen­tar.

De parteira a cantora

Mas ela não para. Durante esse perío­do de pan­demia, fez 13 par­tos em Rio Bran­co. Ela é con­vi­da­da para palestras sobre saúde da mul­her e plane­ja­men­to famil­iar. Além dis­so, em 2017, foi descober­ta em um novo tal­en­to. O seu cam­in­ho ilu­mi­na­do pela lua e pelas memórias é acom­pan­hado tam­bém pela músi­ca. Maria Zenaide foi flagra­da por uma ami­ga can­tan­do no cam­in­ho. “Já fiz mais de 500 músi­cas. Que­ria viv­er dis­so até o final da vida”.

O tal­en­to já é con­sid­er­a­do indis­cutív­el. A fama chegou ao pro­du­tor musi­cal Alexan­dre Ansel­mo, que insis­tiu para que ela gravasse um dis­co. “Nós con­sid­er­amos a Zenaide uma mes­tra da músi­ca tradi­cional aqui no Acre”, afir­ma o músi­co.

Repro­dução: Maria Zenaide em uma de suas apre­sen­tações musi­cais. — Maria Zenaide / Arqui­vo pes­soal

“Des­de cri­ança, eu can­to”. Em 2019, via­jou para Espan­ha com out­ros músi­cos. “Foram 22 dias e cin­co shows”. A pan­demia inter­rompeu a car­reira em ascen­são da parteira-can­to­ra. “Esta­va com cin­co shows mar­ca­dos. Ten­ho 506 músi­cas. Eu esta­va gra­van­do um CD com dez músi­cas sobre a natureza e sobre a temáti­ca das parteiras. Músi­ca para mim é vida, é saúde.”

A parteira teve um fil­ho biológi­co, que mor­reu em 1972 víti­ma da malária. Depois, a mul­her que fez da vida um can­to de amor às cri­anças ado­tou cin­co fil­hos. Hoje já tem cin­co netos. Par­to ela só fez de uma das fil­has, a pro­fes­so­ra Ozilei­de Maria Car­val­ho, que tam­bém mora no Acre. Mes­mo com tan­ta exper­iên­cia, diz que ficou com as “per­nas moles”.

“Ela é uma mãe mar­avil­hosa e nos educou. Crescer ven­do seu tra­bal­ho foi muito impor­tante. Ela é batal­hado­ra. Ela é um anjo da guar­da e o que ela ensi­nou eu ten­to pas­sar para os meus fil­hos”, diz a pro­fes­so­ra. O neto que Zenaide fez o par­to, Vale­ri­ano, já com­ple­tou 21 anos.

Zenaide, além de can­tar e faz­er par­tos, faz arte­sana­to para com­ple­men­tar a ren­da. Quan­do aju­da no par­to, tam­bém cos­tu­ma rece­ber doações. Mas ela sabe que essa é uma mis­são.

“Ser parteira sig­nifi­ca ter coração bom, sem gan­har nada, tra­bal­har por praz­er. Ten­ho certeza de que o par­to na nos­sa vida é uma real­iza­ção de vida”.

Edição: Alessan­dra Esteves

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