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Zona da Mata de PE sofre com violência dos conflitos agrários

Repro­dução: @Agência Brasil / EBC

Disputas afetam aproximadamente 1,5 mil famílias


Pub­li­ca­do em 04/09/2023 — 08:00 Por Lety­cia Bond — Repórter da Agên­cia Brasil — São Paulo

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A vida de parte da pop­u­lação da Zona da Mata de Per­nam­bu­co e, como con­se­quên­cia, as expressões de cul­tura pop­u­lar cri­adas na região estão sob ameaça. Relatório do Con­sel­ho Nacional dos Dire­itos Humanos (CNDH), que esteve no local em agos­to deste ano jun­to com out­ras orga­ni­za­ções, desta­ca que dis­putas por ter­ra lev­am a vio­lações de dire­itos e vio­lên­cia. Isso ocorre por meio de um proces­so chama­do de “lavagem de ter­ras”, que envolve nomes da indús­tria açu­careira e do setor pecuário.

Ape­nas na Zona da Mata sul, con­forme apurou a Agên­cia Brasil, as dis­putas por ter­ra afe­tam cer­ca de 1,5 mil famílias que vivem na região há diver­sas ger­ações. Uma cri­ança de 9 anos de idade foi assas­si­na­da a tiros, no ano pas­sa­do, quan­do home­ns arma­dos invadi­ram a casa de sua família.

A lavagem de ter­ras con­siste em uma estraté­gia ado­ta­da por empre­sas para adquirir ter­ras a um preço mais baixo do que valem, expul­san­do tra­bal­hadores da região e expandin­do negó­cios da pecuária. Con­forme esclarece o CNDH, isso tem sido feito por meio de leilões da Justiça, que garan­tem que os mes­mos gru­pos de empresários se per­petuem no poder.

As empre­sas do ramo do açú­car vão à falên­cia, entram em recu­per­ação judi­cial, e, para limpar o nome no âmbito fis­cal e se livrar das obri­gações que teri­am em relação aos fun­cionários, estru­tu­ram um esque­ma para que os imóveis e áreas — muitas das quais foram prometi­das aos tra­bal­hadores, como for­ma de con­tra­parti­da — sejam arremata­dos ness­es leilões. De acor­do com o doc­u­men­to do CNDH, hou­ve relatos de ações tra­bal­his­tas que trami­tam há mais de 20 anos.

“Não bas­tasse todo esse quadro, é notório nas regiões vis­i­tadas pela mis­são out­ras can­dentes vio­lações aos dire­itos humanos e soci­ais das cam­pone­sas e dos cam­pone­ses, como, por exem­p­lo, o par­co ou inex­is­tente aces­so à edu­cação para as cri­anças e jovens, à água potáv­el, à ali­men­tação ade­qua­da, à estru­tu­ra de laz­er e entreten­i­men­to, à saúde, ao trans­porte públi­co, ao sanea­men­to bási­co, à cole­ta de lixo etc., isto é, um quadro de pobreza vex­am­inoso, fru­to de proposi­tais omis­sões e neg­ligên­cias do Esta­do, que, deste modo, man­tém no inter­esse das elites e da bur­gue­sia per­nam­bu­cana e de esta­dos viz­in­hos um vas­to exérci­to de mão de obra de reser­va”, escreve o con­sel­ho no relatório de 32 pági­nas.

Casos de violências

No dia 23 de agos­to, famílias de agricul­tores que cor­rem risco de perder suas casas e seu sus­ten­to realizaram um protesto e, no sába­do seguinte, em 26 de agos­to, foram sur­preen­di­das com uma ação de rein­te­gração de posse.

Tam­bém no sába­do (23), um tra­bal­hador rur­al teve a casa inva­di­da por home­ns enca­puza­dos, que chegaram até o endereço em uma viatu­ra da polí­cia.

No cen­tro dos embat­es, estão os municí­pios de Mara­ial e Jaque­ira e as comu­nidades dos engen­hos Ferve­douro, Bar­ro Bran­co, Várzea Vel­ha, Caixa D’água, Laran­jeira, Guer­ra e Jaque­ira.

As dis­putas têm chama­do a atenção de diver­sas enti­dades de defe­sa dos dire­itos humanos. No dia 21 de agos­to, rep­re­sen­tantes da Comis­são Pas­toral da Ter­ra (CPT), do Con­sel­ho Nacional de Dire­itos Humanos

(CNDH), do Fórum Nacional de Refor­ma Urbana (FNRU) e da Cam­pan­ha Nacional Despe­jo Zero reuni­ram-se com as famílias dos agricul­tores.

Empresários procu­ram se man­ter no con­t­role, e o que tem muda­do é o ramo de ativi­dade econômi­ca. Antes, a Zona da Mata era con­heci­da pela pre­sença da indús­tria açu­careira, car­ac­terís­ti­ca, que, aliás, mar­ca a cul­tura e a arte pro­duzi­das em canavi­ais da região, como a fes­ta de ter­reiro chama­da de cav­a­lo-mar­in­ho e o mara­catu de baque solto (ou mara­catu rur­al), repas­sadas por mestres e mes­tras da cul­tura pop­u­lar. Atual­mente, a pecuária tam­bém é ativi­dade dom­i­nante na região.

Percepções do CNDH

Em abril de 2021, o CNDH rece­beu as primeiras denún­cias dos cam­pone­ses e, em segui­da, ques­tio­nou o gov­er­no de Per­nam­bu­co. Em setem­bro de 2022, dois rep­re­sen­tantes do con­sel­ho foram até a Zona da Mata, incluin­do o atu­al pres­i­dente do órgão, André Carneiro, que na época era con­sel­heiro e ain­da não esta­va nes­sa posição de coman­do.

Carneiro, em entre­vista à Agên­cia Brasil, lem­brou que, no dia em que pisou no perímetro do engen­ho de Ferve­douro, soube que havia um con­fli­to no engen­ho de Bar­ro Bran­co, para onde se deslo­cou. Na ocasião, o grupo do CNDH foi ameaça­do com o uso de drones.

Ele acres­cen­tou que grande parte dos cam­pone­ses é de idosos e que uma lid­er­ança já está no pro­gra­ma estad­ual de pro­teção a víti­mas e que foram insta­l­adas câmeras na região. Para Carneiro, a área de Bar­ro Bran­co é uma das que mais causam pre­ocu­pação, pelo nív­el de ten­são que se instalou, o que pode ser con­fir­ma­do na visi­ta mais recente.

“Nós nos deslo­camos para lá e ver­i­fi­camos a existên­cia de vig­i­lantes arma­dos ameaçan­do os tra­bal­hadores. A situ­ação já havia, inclu­sive, sido lev­a­da à del­e­ga­cia. Con­ver­samos com o comis­sário que se encon­tra­va no local e tive­mos a notí­cia de que, nesse fim de sem­ana, foi deferi­do um inter­di­to proibitório e a reti­ra­da dos tra­bal­hadores da área onde estavam acam­pa­dos”, disse. “Hou­ve um episó­dio em que pes­soas armadas entraram no ter­ritório e na região próx­i­ma, onde fica a sede da asso­ci­ação dos tra­bal­hadores.”

O pres­i­dente do CNDH tam­bém infor­mou que, até o ano pas­sa­do, havia uma Comis­são de Acom­pan­hamen­to de Con­fli­tos Agrários (Cea­ca), do gov­er­no do esta­do, que já procu­ra­va se man­ter atu­al­iza­da sobre o que ocor­ria no âmbito da Usi­na Frei Caneca, um dos locais de con­fli­to. Uma das recomen­dações que o CNDH dev­erá faz­er na próx­i­ma edição do relatório sobre a situ­ação na Zona da Mata é a per­manên­cia da comis­são em fun­ciona­men­to.

Ataques

Além de ameaçar recor­rer à Justiça para tirar as famílias da região, como for­ma de se apro­pri­ar das ter­ras, os pis­toleiros tam­bém têm ten­ta­do coa­gir os tra­bal­hadores e as tra­bal­hado­ras destru­in­do lavouras e por meio da pul­ver­iza­ção de agrotóx­i­cos, per­to de plan­tações e residên­cias, por meio de drones. Para as mul­heres da Zona da Mata, a apreen­são é dupla, por terem seus dire­itos desre­speita­dos e os fil­hos expos­tos à vio­lên­cia.

O advo­ga­do Leni­val­do Lima, que é mem­bro da Comis­são de Justiça e Paz da Dio­cese de Pal­mares e da Cam­pan­ha Nacional da Vida por um Fio e que acom­pan­ha as famílias da região, con­tou como foi o assas­si­na­to do garot­in­ho Jonatan San­tos, de 9 anos, em fevereiro de 2022. Um grupo de sete pes­soas armadas inva­diu a casa da família, cercando‑a pela frente e pelos fun­dos, já abrindo fogo na chega­da.

O grupo atingiu, primeiro, o pai do garo­to, com um tiro no ombro. A cri­ança assis­tia à tele­visão na sala e cor­reu para debaixo de uma cama, onde a mãe se escon­dia. A mul­her, ven­do o que pode­ria acon­te­cer, implor­ou para que não ati­rassem no fil­ho, mas os crim­i­nosos igno­raram o pedi­do e der­am tiros quan­do ain­da esta­va nos braços da mãe.

Rozario França, dire­to­ra de Agrária da Fed­er­ação dos Tra­bal­hadores Rurais Agricul­tores Famil­iares de Per­nam­bu­co (Fetape), con­ver­sou com uma pro­fes­so­ra do meni­no, que disse ter medo de que os out­ros estu­dantes sejam alvos de agressões.

Ela con­ta que muitos têm deix­a­do de ir às aulas, porque as estradas são blo­queadas com boiadas, proposi­tal­mente. “O que vejo é que essas famílias estão em uma situ­ação muito triste. Você não vive, você veg­e­ta, com as ameaças diárias con­tra mul­her, homem, cri­ança e o que acon­te­ceu em Ron­cadorz­in­ho, onde foi tira­da a vida daque­la cri­ança”, declara.

“Jagunços indo e vin­do. Isso é para ame­drontar as famílias. Acho que nem min­ha cabeça está mais tão boa, diante dessa situ­ação”, afir­ma a dire­to­ra da Fetape, que está na região há cer­ca de um ano.

Para Leni­val­do Lima, o cenário só não piorou por causa da inter­venção das enti­dades de dire­itos humanos. “[Há] Caso de sim­u­lação de que há armas e dro­gas na casa das famílias de Bar­ro Bran­co. A polí­cia chega acu­san­do, as pes­soas ficam deses­per­adas. Para a polí­cia, é per­mis­são para entrar. Aí, entra, bagunça tudo e vai emb­o­ra. É assim de for­ma con­stante”, rela­ta.

Na avali­ação do advo­ga­do, a tran­sição da indús­tria açu­careira para a pecuária por si só já causaria um impacto sig­ni­fica­ti­vo na região, porque a ofer­ta de tra­bal­ho é menor. Lima apon­ta o uso do chama­do “cor­ren­tão” para reti­ra­da da veg­e­tação nati­va dan­do lugar ao pas­to. O ter­mo é muito con­heci­do no con­tex­to de des­mata­men­to da Amazô­nia tam­bém. “Atual­mente, temos uma trans­for­mação vio­len­ta”, avalia. Ele acres­cen­ta que o impacto é tam­bém para o meio ambi­ente. “As fontes de água todas destruí­das pelos bois.”

“A vio­lação históri­ca, aqui, de dire­itos humanos ago­ra é muito maior, porque vem incor­po­ra­da em uma cara de desen­volvi­men­to malé­fi­co, porque eles jus­ti­fi­cam todas essas ativi­dades com um frig­orí­fi­co da Mas­ter­boi que foi insta­l­a­do na fron­teira da Zona da Mata e a meta é abater 1 mil bois por dia. A Zona da Mata toda, se ded­i­ca­da à pecuária exten­si­va, não dá con­ta dess­es bois. Os con­fli­tos agrários têm sido uma resistên­cia a esse mod­e­lo, a essa for­ma de vio­len­tar o dire­ito de viv­er no cam­po e a pro­duzir os ali­men­tos no regime de agri­cul­tura famil­iar”, emen­da.

Conflitos em 2022

A últi­ma edição do relatório da CPT sobre vio­lên­cia no cam­po, que reúne dados de 2022, mostra que Per­nam­bu­co reg­istrou 42 con­fli­tos por ter­ra, que impactaram 4.259 famílias. Seis deles acon­te­ce­r­am na cidade de Jaque­ira e três em Mara­ial. Pela con­tagem da enti­dade, hou­ve, ain­da, qua­tro con­fli­tos por água em Jaque­ira e um em Mara­ial, todos envol­ven­do con­t­a­m­i­nação por agrotóx­i­cos.

Outro lado

Segun­do André Carneiro, a Polí­cia Fed­er­al (PF) estaria inves­ti­gan­do pos­síveis fraudes nos leilões de ter­ra. A reportagem procurou a PF para con­fir­mar tal infor­mação, mas não obteve respos­ta até o momen­to.

Em nota, o Tri­bunal de Justiça de Per­nam­bu­co afir­mou que a Comis­são de Con­fli­tos Fundiários do TJPE “irá anal­is­ar detal­hada­mente as sug­estões da Comis­são Nacional de Dire­itos Humanos, apon­tadas no

relatório sobre vio­lação dos dire­itos humanos decor­rentes de con­fli­tos agrários na Zona da Mata de Per­nam­bu­co”.

“Uma das funções da referi­da Comis­são é jus­ta­mente asse­gu­rar os dire­itos fun­da­men­tais de todas as partes envolvi­das ness­es con­fli­tos. Para garan­tir ain­da mais o respeito aos dire­itos humanos das partes envolvi­das, é pos­sív­el que haja futuras parce­rias entre a Comis­são do Tri­bunal e a CNDH, aper­feiçoan­do as ativi­dades que serão desen­volvi­das para solu­cionar judi­cial­mente os con­fli­tos agrários.”

A reportagem tam­bém bus­cou posi­ciona­men­to do gov­er­no de Per­nam­bu­co, por meio da Sec­re­taria de Justiça e Dire­itos Humanos; da unidade do Insti­tu­to Nacional de Col­o­niza­ção e Refor­ma Agrária no esta­do; e das prefeituras de Mara­ial e Jaque­ira.

Agên­cia Brasil ten­tou con­ta­to, sem suces­so, com a admin­is­tração da Usi­na Frei Caneca.

O dire­tor admin­is­tra­ti­vo da Mas­ter­boi, Miguel Zaidan, disse em entre­vista, por tele­fone, à Agên­cia Brasil, que os prob­le­mas da Zona da Mata de Per­nam­bu­co remon­tam “há mais de 15 anos” e que não se pode atribuir a respon­s­abil­i­dade à empre­sa.

Segun­do ele, a com­pan­hia tem bus­ca­do ala­van­car o desen­volvi­men­to na região, por meio da ampli­ação de empre­gos. “São quase 600 empre­gos dire­tos”, afir­mou, ressaltan­do que se tra­ta de “uma empre­sa peque­na”, na com­para­ção com out­ras do seg­men­to, que for­mam “um oligopólio que está aí pelo Brasil”.

Zaidan disse, ain­da, que a indús­tria açu­careira em Per­nam­bu­co “não faz mais frente” ao pata­mar do Sud­este e que a agropecuária é a úni­ca alter­na­ti­va viáv­el no inte­ri­or do esta­do. “Esta­mos muito felizes e orgul­hosos, por estar desen­vol­ven­do tudo isso e mais do que isso: uma cul­tura”, com­ple­tou o dire­tor, que enfa­ti­zou que a com­pan­hia man­tém diver­sas práti­cas de ESG (sigla que se ref­ere aos con­ceitos de sus­tentabil­i­dade ambi­en­tal, social e gov­er­nança cor­po­ra­ti­va).

Edição: Cami­la Maciel e Car­oli­na Pimentel

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