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Fronteira Cerrado: acesso desigual ao Estado agrava conflitos agrários

Povos tradicionais enfrentam obstáculos na Justiça e proteção da terra

Lucas Pordeus León* — envi­a­do espe­cial
Pub­li­ca­do em 04/11/2025 — 07:02
Bal­sas (MA)
Balsas (MA), 09/10/2025 – Lavoura de cultivo de soja avança sobre a vegetação do cerrado na região dos Gerais de Balsas. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Os con­fli­tos agrários no Cer­ra­do são ali­men­ta­dos pela lentidão do Judi­ciário, por autor­iza­ções do Esta­do para des­matar áreas ain­da em dis­pu­ta, além da difi­cul­dade no aces­so à Justiça por parte de povos e comu­nidades tradi­cionais. Ess­es são alguns dos fatores apon­ta­dos por agricul­tores famil­iares, espe­cial­is­tas e um juiz agrário do esta­do com mais dis­putas por ter­ra no país: o Maran­hão.

Agên­cia Brasil foi até Bal­sas (MA), um dos epi­cen­tros do agronegó­cio e segun­do municí­pio que mais des­ma­ta no país, e encon­trou agricul­tores famil­iares ameaça­dos, pul­ver­iza­ção aérea de agrotóx­i­co, assé­dio finan­ceiro e juízes que detal­ham o taman­ho do desafio de atu­ar na área.

Essa é a quar­ta reportagem da série espe­cial Fron­teira Cer­ra­do, que inves­ti­ga como o des­mata­men­to, atre­la­do ao avanço do agro, pode afe­tar as águas do bio­ma e os recur­sos hídri­cos do país.

Agricultores sem recursos para advogado

Uma das prin­ci­pais críti­cas dos pos­seiros de Gerais de Bal­sas, região a 300km do cen­tro da cidade, é a fal­ta de apoio para enfrentar esse tipo de situ­ação. Sem recur­sos para con­tratar advo­ga­do, depen­dem da Defen­so­ria Públi­ca ou de advo­ga­dos pop­u­lares. Os locais de difí­cil aces­so onde vivem essas comu­nidades con­tribuem para prej­u­dicar o aces­so às insti­tu­ições do Esta­do.

A pres­i­dente da Asso­ci­ação Cam­pone­sa do Maran­hão (ACA), Fran­cis­ca Vieira Paz, via­ja o sul do esta­do pre­stando suporte a comu­nidades e povos tradi­cionais que enfrentam con­fli­tos agrários na região.

“O Esta­do é omis­so. Nós temos casos extremos em que essas pes­soas per­dem a vida, mas a vio­lên­cia no cam­po não é com­bat­i­da. Hoje, os movi­men­tos soci­ais e pas­torais soci­ais são a últi­ma bar­reira de pro­teção dess­es povos que defen­d­em o pouco que ain­da existe do bio­ma Cer­ra­do”.

Balsas (MA), 09/10/2025 – Francisca Vieira Paz, da Associação Camponesa (ACA), na comunidade do Brejão, nos Gerais de Balsas. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Bal­sas (MA), 09/10/2025 – Fran­cis­ca Vieira Paz via­ja o sul do Maran­hão para dar suporte a povos tradi­cionais — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Fran­cis­ca acres­cen­ta que o Judi­ciário não dá respos­ta no tem­po pre­ciso e, enquan­to isso, a soja, o mil­ho, o algo­dão ou o gado avançam sobre os ter­ritórios em dis­pu­ta.

O Maran­hão é, ao lado do Pará, o esta­do com mais con­fli­tos agrários do país, de acor­do com mon­i­tora­men­to feito nacional­mente pela Comis­são Pas­toral da Ter­ra (CPT). De acor­do com o gov­er­no estad­ual, dis­putas fundiárias foram elen­cadas como uma das pri­or­i­dades do atu­al manda­to. Os detal­h­es estão pub­li­ca­dos na reportagem que con­ta as ameaças sofridas pelas comu­nidades tradi­cionais de Bal­sas.

Desmatamento autorizado de áreas em disputa

Ao procu­rar o Tri­bunal de Justiça do esta­do do Maran­hão, a reportagem foi pronta­mente aten­di­da pelo juiz Del­van Tavares, tit­u­lar da Vara Agrária de Imper­a­triz, segun­da maior comar­ca do esta­do, respon­sáv­el por medi­ar con­fli­tos fundiários de natureza cole­ti­va.

Del­van con­tou que a Vara Agrária de Imper­a­triz foi cri­a­da no final de 2024 com juris­dição sobre cer­ca de 70 municí­pios no Sul e Sud­este do esta­do, incluin­do Bal­sas. Antes, todos ess­es casos eram con­cen­tra­dos na comar­ca de São Luís.

O mag­istra­do expli­cou que, geral­mente, os con­fli­tos começam porque um pro­du­tor rur­al com­pra uma área e começa a des­matar o Cer­ra­do em áreas requeri­das por comu­nidades tradi­cionais.

Balsas (MA), 09/10/2025 – Lavoura de cultivo de soja avança sobre a vegetação do cerrado na região do Vão do Uruçuí, nos Gerais de Balsas. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Bal­sas (MA), 09/10/2025 – Lavoura de cul­ti­vo de soja avança sobre a veg­e­tação do cer­ra­do na região do Vão do Uruçuí, nos Gerais de Bal­sas. — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Aque­las comu­nidades, que se dizem pos­suido­ras tam­bém daque­la área, ingres­sam com ações esperan­do um resul­ta­do. De fato, há uma cer­ta morosi­dade. Muitas vezes o juiz de primeiro grau con­cedeu uma lim­i­nar, uma rein­te­gração de posse. Out­ras vezes não. Às vezes, aque­la medi­da que foi deferi­da é revo­ga­da pelo tri­bunal”, recon­heceu.

O juiz da Vara Agrária de Imper­a­triz diz que, des­de que assum­iu o pos­to, ten­ta diminuir o tem­po dos proces­sos por meio das inspeções judi­ci­ais nos locais em dis­pu­ta, ativi­dade que, segun­do ele, é fun­da­men­tal para toma­da de decisão.

“De janeiro para cá, eu já fiz mais de 20 inspeções em difer­entes municí­pios do esta­do, prin­ci­pal­mente nes­sa região que tem um avanço con­sid­eráv­el do cul­ti­vo de soja”, enu­mera.

Porém, para o mag­istra­do, o prob­le­ma maior são as autor­iza­ções de supressão de veg­e­tação emi­ti­das sem que este­ja paci­fi­ca­do quem tem o dire­ito ao uso daque­la ter­ra, se comu­nidades e povos tradi­cionais, ou os pro­du­tores rurais.

“Com­preen­do que essa crise, esse fenô­meno, está muito mais rela­ciona­do a autor­iza­ções indis­crim­i­nadas de órgãos de pro­teção ambi­en­tal do que pro­pri­a­mente da morosi­dade da Justiça. Porque essas pes­soas, grileiras ou não, pro­pri­etários legí­ti­mos ou não, elas, para dev­astarem essas áreas, nor­mal­mente con­tam com autor­iza­ção dos órgãos de pro­teção ambi­en­tal”.

Em entre­vista à Agên­cia Brasil, detal­ha­da em out­ra reportagem da série espe­cial Fron­teira Cer­ra­do, o secretário do Meio Ambi­ente do Maran­hão, Pedro Cha­gas, sus­ten­tou que todas as autor­iza­ções são emi­ti­das seguin­do a leg­is­lação e de for­ma téc­ni­ca.

Fragilidades cartoriais facilitam grilagem

difi­cul­dade para ver­i­ficar a veraci­dade e a con­sistên­cia dos doc­u­men­tos car­to­ri­ais tam­bém aju­da a explicar a situ­ação de con­fli­tos, con­forme recon­heceu o juiz da Vara Agrária Del­van Tavares. “Não é fácil iden­ti­ficar. Até porque os cartórios não têm, vamos diz­er, um reg­istro alta­mente con­fiáv­el. Isso vai geran­do incon­sistên­cias”, comen­ta.

Tavares citou o caso de uma área gri­la­da que, com finan­cia­men­to de ban­co ofi­cial, des­ma­tou cer­ca de 600 hectares de Cer­ra­do, chegan­do nos quin­tais das residên­cias de comu­nidade tradi­cional com­pos­ta por 200 famílias.

“O sujeito com­prou 400 hectares de out­ra pes­soa com três matrícu­las da mes­ma área reg­istradas no cartório. Ele reuniu essas matrícu­las, unifi­cou e trans­for­mou em out­ra matrícu­la. Ao faz­er isso, o que eram 400 hectares se trans­for­maram em 900 hectares”, rela­tou.

Ou seja, com essas ações car­to­ri­ais, uma pes­soa con­seguiu gri­lar, no papel, 500 hectares de ter­ra. “Logo em segui­da, ele con­segue uma autor­iza­ção de supressão de veg­e­tação, um finan­cia­men­to de um ban­co ofi­cial e destrói uma parte sig­ni­fica­ti­va do Cer­ra­do”, com­ple­tou.

Balsas (MA), 09/10/2025 – Gavião-caboclo em area de vegetação de cerrado atingida por queimada nos Gerais de Balsas. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Bal­sas (MA), 09/10/2025 – Gav­ião-cabo­clo em area de veg­e­tação de cer­ra­do atingi­da por queima­da nos Gerais de Bal­sas.  — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

Terra mais barata

Pesquisas da Uni­ver­si­dade Fed­er­al do Pará (UFPA) têm desta­ca­do o papel da gri­lagem no proces­so de aber­tu­ra de novas áreas de des­mata­men­to, tan­to no Cer­ra­do quan­to na Amazô­nia.

O pro­fes­sor de econo­mia políti­ca da UFPA, Dani­lo Araújo Fer­nan­des, argu­men­tou que a gri­lagem, ao baixar o preço da ter­ra, tor­na lucra­ti­va a aber­tu­ra de novas áreas para a pro­dução agrí­co­la: “a gri­lagem facili­ta o proces­so de expan­são das fron­teiras porque as ter­ras con­tin­u­am sendo ven­di­das, mes­mo gri­ladas, a preços baratos”.

Dev­i­do a esse proces­so de gri­lagem, o espe­cial­ista afir­ma que as ações de coman­do e con­t­role que con­seguiram, por algum tem­po, reduzir o des­mata­men­to do Cer­ra­do e da Amazô­nia são insu­fi­cientes se a questão fundiária não for resolvi­da.

“Quan­do há uma que­da no des­mata­men­to, se atribui o suces­so à fis­cal­iza­ção ambi­en­tal. Mas os caras que gri­la­ram a ter­ra, con­tin­uaram com a ter­ra, porque não hou­ve um avanço sobre a questão fundiária. Você avançou de 2004 em diante na questão ambi­en­tal, mas não na questão fundiária”, desta­cou Dani­lo.

Preconceito e origens agrárias

Balsas (MA), 09/10/2025 – Trator trabalha em fazenda de cultivo de soja na região da Batavo. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: Bal­sas (MA), 09/10/2025 – Agronegó­cio mecan­iza­do rep­re­sen­ta a mod­ernidade para mag­istra­dos, segun­do juiz aposen­ta­do. — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

O juiz aposen­ta­do Jorge Moreno, que atual­mente dirige o Comitê de Sol­i­dariedade à Luta pela Ter­ra (Com­su­lote), desta­ca out­ro obstácu­lo para que a Justiça seja efi­ciente na res­olução de con­fli­tos agrários: o pre­con­ceito com comu­nidades tradi­cionais.

Na avali­ação de Moreno, o Judi­ciário não resolve os con­fli­tos porque exi­s­tiria uma men­tal­i­dade, comum den­tro do sis­tema de Justiça e dos cur­sos de dire­ito, de que o agricul­tor famil­iar, sem estu­do e sem cap­i­tal, rep­re­sen­taria o atra­so, enquan­to o agronegó­cio mecan­iza­do e cap­i­tal­iza­do seria a mod­ernidade.

“Isso aca­ba influ­en­cian­do ide­o­logi­ca­mente. Como a maio­r­ia dos juízes são urbanos, eles olham as comu­nidades tradi­cionais como com cer­to atra­so cul­tur­al, atra­so que não gera emprego, as pes­soas vivem de sub­sistên­cia, elas não têm grande pro­dução. Então, para que vai ter ter­ra?”.

O juiz aposen­ta­do argu­men­ta, ain­da, que a maio­r­ia dos juízes têm vín­cu­los com pro­du­tores rurais, sendo essa uma questão de “class­es soci­ais”.

“Você colo­ca um caso para o juiz e na hora desco­bre que um par­ente dele é fazen­deiro”, avaliou, acres­cen­tan­do que, no Brasil, mais vale um doc­u­men­to do cartório, ain­da que incon­sis­tente, do que a posse que famílias têm daque­la ter­ra por décadas.

“Como é que você vai provar que você é pro­pri­etário se você não tem aces­so aos níveis de edu­cação e você não tem aces­so aos cartórios? Então, criou ess­es entrav­es”, com­ple­tou.

Defensoria Pública

Procu­ra­da por causa das críti­cas das comu­nidades vis­i­tadas sobre fal­ta de apoio do Esta­do nos con­fli­tos fundiários, a Defen­so­ria Públi­ca do Maran­hão (DPE/MA) infor­mou, por meio de nota, que pos­sui o Núcleo Region­al de Bal­sas para defend­er comu­nidades vul­neráveis afe­tadas por con­fli­tos fundiários ou prob­le­mas socioam­bi­en­tais.

“A unidade pres­ta assistên­cia jurídi­ca inte­gral e gra­tui­ta a famílias e povos tradi­cionais que depen­dem dire­ta­mente dos recur­sos nat­u­rais do Cer­ra­do para sua sub­sistên­cia, atuan­do tan­to judi­cial quan­to extra­ju­di­cial­mente”, infor­mou.

A enti­dade acres­cen­tou que atua por meio do Núcleo de Defe­sa Agrária e Socioam­bi­en­tal (NDAS), com unidades em São Luís e Imper­a­triz, “garan­ti­n­do cober­tu­ra espe­cial­iza­da em todo o esta­do”, além das ativi­dades na Comis­são Estad­ual de Pre­venção e Com­bate à Vio­lên­cia no Cam­po e Cidades e no Pro­gra­ma de Pro­teção a Defen­sores de Dire­itos Humanos.

Série especial

Esta reportagem é a primeira da série espe­cial Fron­teira Cer­ra­do, que inves­ti­ga como o avanço do agro no bio­ma está afe­tan­do os recur­sos hídri­cos do país. Até quar­ta-feira serão pub­li­ca­dos novos con­teú­dos — acom­pan­he!

A pro­dução dessa série foi via­bi­liza­da a par­tir da Seleção de Reporta­gens Nádia Fran­co, ini­cia­ti­va da Empre­sa Brasil de Comu­ni­cação (EBC) que des­ti­nou R$ 200 mil para o custeio de con­teú­dos espe­ci­ais pro­duzi­dos por jor­nal­is­tas da empre­sa. De 54 pro­je­tos inscritos, oito foram sele­ciona­dos por um con­sel­ho edi­to­r­i­al.

A jor­nal­ista Nádia Fran­co era edi­to­ra da Agên­cia Brasil e dedi­cou 49 anos à comu­ni­cação públi­ca. Ela fale­ceu em agos­to de 2025.

O Insti­tu­to Sociedade, Pop­u­lação e Natureza (ISPN) cus­teou as pas­sagens áreas da equipe até Imper­a­triz (MA).

*Com pro­dução de Beat­riz Evaris­to

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