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Mães se mobilizam por direitos de crianças e adolescentes trans

Repro­du­ção: © Fer­nan­do Frazão/Agência Bra­sil

“Meu papel é o de fortalecimento”, conta Maria Cecília, mãe do Caio


Publi­ca­do em 14/05/2023 — 13:25 Por Viní­cius Lis­boa — Repór­ter da Agên­cia Bra­sil — Rio de Janei­ro

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A comu­ni­có­lo­ga Tha­mirys Nunes já havia se cons­ci­en­ti­za­do de que pre­ci­sa­va apoi­ar sua filha trans. Seu com­pa­nhei­ro e pai da cri­an­ça, tam­bém. Mas se den­tro de casa esta­va garan­ti­do que o cres­ci­men­to de sua filha con­ta­ria com amor e supor­te de que toda cri­an­ça neces­si­ta, a mãe logo com­pre­en­deu que, do lado de fora, havia mui­tas ame­a­ças para que Agatha, hoje com 8 anos, pudes­se viver sua iden­ti­da­de ple­na­men­te.

“No Para­ná, naque­la épo­ca [2019], não podia ter nome soci­al de cri­an­ças trans no RG, só no de adul­tos. E eu fui fazer uma via­gem de car­ro para São Pau­lo e tive que vol­tar de ôni­bus. No embar­que, o moto­ris­ta falou que aque­le docu­men­to que eu tinha não repre­sen­ta­va a cri­an­ça que esta­va comi­go. Eu falei que ela é uma meni­na trans, mas ele insis­tiu que o docu­men­to era de um meni­no, e que eu esta­va com uma meni­na. Enfim, foi uma hora e meia de gri­ta­ria na rodo­viá­ria, ten­do vári­os pro­ble­mas e difi­cul­da­des, até sen­do acu­sa­da de ter seques­tra­do ela”, lem­bra Tha­mirys. “Eu come­cei a enten­der que algu­mas coi­sas são mui­to espe­cí­fi­cas da pau­ta da cri­an­ça e do ado­les­cen­te trans, e que ain­da não tínha­mos nenhum olhar sobre isso.”

Essa cons­ci­ên­cia foi se soman­do a uma per­cep­ção de que mes­mo a rede de pro­te­ção à cri­an­ça e ao ado­les­cen­te e as enti­da­des de defe­sa dos direi­tos LGBTQIAP+ não esta­vam pre­pa­ra­das para ori­en­tar mães de cri­an­ças trans a lidar com difi­cul­da­des do dia a dia, que podem ir da matrí­cu­la à esco­la a um embar­que para via­jar, como no exem­plo rela­ta­do. Tha­mirys con­ta que foi denun­ci­a­da para o con­se­lho tute­lar por uma uni­da­de bási­ca de saú­de, que a acu­sou de indu­zir a iden­ti­da­de de gêne­ro de sua filha. Depois dis­so, cin­co esco­las nega­ram a matrí­cu­la dela, por­que dis­se­ram que não acei­ta­vam cri­an­ças trans. Ao ten­tar denun­ci­ar ofen­sas à polí­cia, a ati­vis­ta lem­bra ter ouvi­do do dele­ga­do que se tra­ta­va de um insul­to sim­ples, e que não era trans­fo­bia por­que ela não era uma pes­soa trans. Ficou cada vez mais explí­ci­to que acei­tar a ausên­cia de direi­tos não era uma opção.

“A gen­te enten­deu que isso era tão essen­ci­al para a qua­li­da­de de vida da minha filha como ter comi­da em casa”, resu­me ela, que lan­çou o livro Minha Cri­an­ça Trans?, em 2020. “Mui­ta gen­te che­ga­va para mim e per­gun­ta­va: ‘você já ten­tou isso? Você já ten­tou aqui­lo?’ E eu que­ria que as pes­so­as sou­bes­sem que eu já tinha ten­ta­do tudo, e que, de fato, eu tinha uma cri­an­ça trans. Não era modi­nha, não era um dese­nho, nem era nenhu­ma influên­cia exter­na.”

Minha Criança Trans

A publi­ca­ção do livro fez com que outras mães e pais se apro­xi­mas­sem, cri­an­do uma comu­ni­da­de que come­çou ao redor das dis­cus­sões escri­tas por ela, mas ganhou for­ma como espa­ço de mobi­li­za­ção polí­ti­ca até que, no ano pas­sa­do, Tha­mirys e um gru­po de 580 famí­li­as fun­da­ram a orga­ni­za­ção não gover­na­men­tal Minha Cri­an­ça Trans.

“Eu não fiz por­que eu sou legal. Eu fiz por­que nin­guém tinha fei­to. Eu fiz por neces­si­da­de. Eu fiz por­que eu tenho medo que a minha filha mor­ra. Eu fiz por­que eu não que­ro mais ser acu­sa­da de seques­tro. Eu fiz por­que nenhu­ma mãe tem que ser denun­ci­a­da ao con­se­lho tute­lar por isso. Então, eu não fiz por­que eu sou uma mãe legal. Eu fiz por­que eu sou mãe deses­pe­ra­da, e é des­se lugar que o meu ati­vis­mo fun­ci­o­na, do deses­pe­ro”, desa­ba­fa. “As pes­so­as mui­tas vezes não enten­dem e falam assim: ‘ah, mas a sua filha tem sor­te, ela tem pais que a aco­lhe­ram como vocês, que têm uma boa con­di­ção de vida. Para quê fazer essa luta toda?’ E é por­que a minha filha não pre­ci­sa de sor­te, a minha filha pre­ci­sa de direi­tos, por­que a sor­te aca­ba.”

Escuta e pesquisa

Para se pre­pa­rar para a mili­tân­cia, Tha­mirys, uma mulher bran­ca, hete­ros­se­xu­al, cis­gê­ne­ro e de clas­se média, con­ta que pre­ci­sou ouvir mui­to, conhe­cer outras pes­so­as trans e estu­dar o tema com pro­fun­di­da­de. E a posi­ção de pri­vi­lé­gio per­mi­tiu que ela se dedi­cas­se inte­gral­men­te a isso. “Minha famí­lia, até a che­ga­da da minha filha, era uma famí­lia extre­ma­men­te cis-héte­ro. Eu não tinha envol­vi­men­to com ami­gos LGBTs, e a pri­mei­ra pes­soa trans que eu conhe­ci foi a minha filha. Então, eu tive tam­bém esse pro­ces­so de des­co­ber­ta”, con­ta ela, que se pau­tou prin­ci­pal­men­te pela escu­ta para for­mar sua con­vic­ção de que tinha uma filha trans.

“Eu pro­cu­rei um espe­ci­a­lis­ta em cri­an­ças trans e per­gun­tei se a minha filha era. Ele res­pon­deu: ‘não sou eu que vou falar isso, quem vai falar isso é ela. Eu só vou te ensi­nar a escu­tar’. Eu sei que a minha filha é uma cri­an­ça trans por­que eu escu­to a minha filha, eu obser­vo a minha filha e estou aber­ta ao que ela me traz. Quan­do uma cri­an­ça che­ga para você, com 3 anos e 11 meses, e fala ‘mamãe, eu pos­so mor­rer hoje para nas­cer uma meni­na ama­nhã?’ Como não escu­tar isso, como você não pres­ta aten­ção a uma cri­an­ça que diz ‘mamãe, sabe o que é tris­te? É tris­te que Deus não me fez meni­na. A vida seria mui­to mais legal se eu fos­se uma meni­na’. Então, se você escu­tar isso, você tem que pres­tar aten­ção e pen­sar no porquê des­se lamen­tar, no porquê des­se pesar. Aon­de isso quer che­gar. Minha con­vic­ção está no bem-estar da minha filha. Eu tinha um meni­no tris­te, amu­a­do, cala­do. E eu tenho uma meni­na viva, feliz, con­fi­an­te. É dela que vem, e enquan­to ela esti­ver bem, enquan­to isso fizer sen­ti­do para ela, esta­rei com ela.”

Famílias de todo o país

Tha­mirys pre­si­de a ONG e tem con­ta­to com famí­li­as do Bra­sil intei­ro, com cri­an­ças e ado­les­cen­tes de 4 a 18 anos, incluin­do pes­so­as de dife­ren­tes raças, reli­giões e pes­so­as com defi­ci­ên­cia. Ela lamen­ta, no entan­to, ain­da não con­se­guir che­gar a tan­tas famí­li­as em situ­a­ção de mais vul­ne­ra­bi­li­da­de econô­mi­ca e ter reu­ni­do mais famí­li­as de clas­se média e média alta em sua cami­nha­da.

“Temos famí­li­as com vul­ne­ra­bi­li­da­de econô­mi­ca, mas temos uns 60% que são de clas­se média e clas­se média alta. Que­re­mos virar esse jogo e esta­mos pen­san­do em pro­je­tos e arti­cu­la­ções”, con­ta. “As mães che­gam até nós com mui­tas dúvi­das e inse­gu­ran­ças, em um pro­ces­so ain­da de mui­ta dor. A gran­de mai­o­ria tem medo de dei­xar a tran­si­ção acon­te­cer e o filho sofrer vio­lên­cia. E é pre­ci­so per­gun­tar: ‘você não acha que ele já não está vul­ne­rá­vel? Ele está vul­ne­rá­vel e den­tro de um armá­rio em que não cabe. É uma dupla vio­lên­cia’. Mui­tos pais negam a tran­si­ção por medo, pen­san­do que vão man­ter o filho segu­ro. Eu não con­de­no e com­pre­en­do, mas a gen­te tem que for­ta­le­cer esses pais para que eles enten­dam que a vio­lên­cia tem que ficar da por­ta para fora de casa, e negar a iden­ti­da­de de um filho tam­bém é uma vio­lên­cia.”

Entre as mães que pro­cu­ram a ONG, rara­men­te há casos que che­ga­ram ao extre­mo de terem expul­sa­do seus filhos trans de casa, his­tó­ria de vida rela­ta­da com frequên­cia na comu­ni­da­de trans. Por outro lado, é fre­quen­te que jovens trans peçam aju­da sobre como con­tar para as mães que são tran­se­xu­ais. Tha­mirys afir­ma que cos­tu­ma acon­se­lhar a apre­sen­tar a tran­se­xu­a­li­da­de aos pais por meio fil­mes, séri­es e livros, antes de sair do armá­rio dire­ta­men­te. “Eu falo para ser sin­ce­ro, dizer o que sen­te. E dei­xo meu tele­fo­ne e digo que é para a mãe me ligar, por­que eu estou com ela.”

Falta de normas específicas

Além de dar aco­lhi­men­to a essas famí­li­as, a ONG ori­en­ta em ques­tões buro­crá­ti­cas e rei­vin­di­ca polí­ti­cas públi­cas para as cri­an­ças trans, que Tha­mirys afir­ma serem ine­xis­ten­tes. Ape­sar de o Bra­sil ter um Esta­tu­to da Cri­an­ça e do Ado­les­cen­te reco­nhe­ci­do inter­na­ci­o­nal­men­te, uma rede de pro­te­ção robus­ta de con­se­lhos tute­la­res e um sis­te­ma de saú­de uni­ver­sal, polí­ti­cas espe­cí­fi­cas para cri­an­ças trans ain­da se fazem neces­sá­ri­as, defen­de ela, que vê a comu­ni­da­de refém do bom sen­so de agen­tes públi­cos.

“Infe­liz­men­te, a gen­te enxer­ga a pau­ta da cri­an­ça e ado­les­cen­te trans como uma pau­ta de cos­tu­mes, e, em pau­ta de cos­tu­mes, a atu­a­ção é via pre­con­cei­to, via estig­mas reli­gi­o­sos, via tabus, via achis­mos. A gen­te pre­ci­sa tirar a pau­ta da cri­an­ça e do ado­les­cen­te trans dos cos­tu­mes e migrar para a dig­ni­da­de huma­na, e, aí sim, esses direi­tos todos esta­be­le­ci­dos e já reco­nhe­ci­dos pode­rão ser apli­ca­dos”, argu­men­ta ela “Quan­tos pedi­a­tras fala­ram absur­dos para mães em con­sul­tó­ri­os médi­cos, quan­tas esco­las. A gen­te teve um caso em que uma juí­za, em uma audi­ên­cia de reti­fi­ca­ção, falou para uma meni­na de 16 anos: ‘eu vou até alte­rar seu nome, mas você nun­ca vai ser mulher de ver­da­de’. Então, quan­do o Esta­do falha no seu bom sen­so, nós pre­ci­sa­mos de nor­ma­ti­vas cla­ras, para não ter dúvi­das. E o Esta­do falha em reco­nhe­cer a trans­ge­ne­ri­da­de em sua inte­gra­li­da­de, e a infan­to­ju­ve­nil mais ain­da. Então, em mui­tas situ­a­ções, a gen­te tem que con­tar com o bom sen­so. E, só com o bom sen­so, está difí­cil.”

Tha­mirys man­tém um per­fil no Ins­ta­gram em que publi­ca con­teú­dos sobre o tra­ba­lho da ONG Minha Cri­an­ça Trans.

Mães pela Diversidade

A tra­je­tó­ria de Tha­mirys e a da ONG Minha Cri­an­ça Trans é pare­ci­da com a das Mães pela Diver­si­da­de, gru­po for­ma­do prin­ci­pal­men­te por mulhe­res que são mães de pes­so­as da sigla LGBTQIA+ e que rei­vin­di­cam os direi­tos de seus filhos sem tirar seus pro­ta­go­nis­mos. É o caso da pro­fes­so­ra de edu­ca­ção infan­til Maria Cecí­lia Cas­tro, mãe do Caio, de 13 anos, que sem­pre se inco­mo­dou com rou­pas femi­ni­nas e com o nome com que foi bati­za­do. Pes­qui­sa­do­ra do tema em sua dis­ser­ta­ção de mes­tra­do, ela con­ta que estu­dar não faci­li­tou tan­to as coi­sas para a mater­ni­da­de.

Niterói (RJ), 14/05/2023 - A professora Maria Cecíclia Castro, coordenadora do Mães pela Diversidade no Rio de Janeiro, com o filho Caio, de 13 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­du­ção: A pro­fes­so­ra Maria Cecí­clia Cas­tro, coor­de­na­do­ra do Mães pela Diver­si­da­de no Rio de Janei­ro, com o filho Caio, de 13 anos — Fer­nan­do Frazão/Agência Bra­sil

“Ele sem­pre se dese­nhou e fez seus autor­re­tra­tos como um meni­no, e eu con­ver­sa­va pra enten­der e ele dizia sem­pre, des­de mui­to peque­no, que gos­ta­ria de ter sido meni­no, que gos­ta das coi­sas de meni­nos, que ele era for­te. E eu fazia um movi­men­to de mos­trar gran­des mulhe­res, mulhe­res for­tes, como a pró­pria Rita Lee, a Fri­da, mulhe­res de luta, van­guar­da, liber­da­de, e ele dizia que não era uma mulher guer­rei­ra e for­te, que era um meni­no”, lem­bra a pro­fes­so­ra, que mora em Nite­rói, no Rio de Janei­ro. “Quan­do ele entra na esco­la, ele não que­ria usar o nome dele de regis­tro. E ele teve uma estra­té­gia mui­to inte­li­gen­te de pedir para os ami­gos cha­ma­rem pelo sobre­no­me. E cha­ma­vam ele de Perei­ra. Me deu um sus­to como ele se orga­ni­zou para se sen­tir um meni­no trans. E, entre os meni­nos, não tinha pre­con­cei­to. Os cole­gas sem­pre o aco­lhe­ram de uma for­ma mui­to afe­tu­o­sa.”

Duran­te a pan­de­mia, ela con­ta que Caio se sen­tiu mui­to per­tur­ba­do pelo iso­la­men­to, com momen­tos de agres­si­vi­da­de. Foi então que o filho mos­trou a ela uma car­ta que tinha escri­to para si mes­mo no futu­ro, em um exer­cí­cio de cáp­su­la do tem­po pro­pos­to pela esco­la.

“Ele abre essa car­ta, e, nela, ele já se cha­ma de Caio. Isso me cho­cou, por­que é uma car­ta lin­da e emo­ci­o­nan­te. Eu lem­brei mui­to da his­tó­ria do João Nery, conhe­ci­do como o pri­mei­ro homem trans a fazer uma cirur­gia. E, a his­tó­ria dele, ele con­ta em um livro cha­ma­do Uma Via­gem Soli­tá­ria, e eu lem­brei de todo o sofri­men­to do João. E, aí, eu falei pra ele: ‘Filho eu que­ria que você sou­bes­se que a sua via­gem não vai ser soli­tá­ria. Você não vai estar sozi­nho’”, lem­bra ela, emo­ci­o­na­da.

Luta coletiva

A che­ga­da ao Mães pela Diver­si­da­de, em 2020, se deu na bus­ca por enten­der melhor como colo­car na prá­ti­ca da mater­ni­da­de os conhe­ci­men­tos que ela já tinha por meio da jor­na­da aca­dê­mi­ca. E tam­bém para escla­re­cer dúvi­das sobre a pró­pria tran­si­ção de gêne­ro e suas ques­tões de saú­de e docu­men­ta­ção. Na ONG, ela se somou a um cole­ti­vo de cer­ca de 2 mil mães — e alguns pais — que se divi­dem em gru­pos de tra­ba­lhos e aco­lhi­men­to liga­dos às iden­ti­da­des de gêne­ro e ori­en­ta­ções sexu­ais de seus filhos e tam­bém às suas espe­ci­a­li­za­ções pro­fis­si­o­nais, quan­do podem aju­dar uns aos outros.

“Aí, a minha vida muda com­ple­ta­men­te. E eu apren­do mui­to com essas mulhe­res”, con­ta ela, que a par­tir do gru­po encon­tra pro­fis­si­o­nais de saú­de espe­ci­a­li­za­dos e sen­sí­veis à trans­ge­ne­ri­da­de e des­co­bre o que pre­ci­sa fazer para resol­ver ques­tões como a mudan­ça do nome do filho no diá­rio esco­lar. “O impor­tan­te dis­so tudo é como vamos aco­lher nos­sos filhos, filhas e filhes. E que as mães come­cem a pen­sar que amor não tem nego­ci­a­ção.”

A atu­a­ção cole­ti­va em mani­fes­ta­ções, audi­ên­ci­as públi­cas e movi­men­tos que defen­dem os direi­tos de seus filhos aju­da tam­bém as mães a se for­ta­le­ce­rem con­tra um dis­cur­so de cul­pa­bi­li­za­ção, que ela des­cre­ve como fre­quen­te. “A gen­te escu­ta mui­to ‘foi você que cri­ou erra­do. A sua cri­a­ção deu erra­do. É uma famí­lia deses­tru­tu­ra­da. Exis­te algum pro­ble­ma que tem que ser inves­ti­ga­do’. Não se enten­de que isso é da pes­soa, e se diz que isso é um pro­ble­ma que tem que ser cor­ri­gi­do”, cri­ti­ca Maria Cecí­lia. “A gen­te faz uma luta para que outras famí­li­as que têm difi­cul­da­de de fazer esse aco­lhi­men­to sai­bam que está tudo bem, que não é um pro­ble­ma, que não é um desa­jus­te, e que o amor é o pilar de todas as rela­ções. É uma orga­ni­za­ção que não tem cunho par­ti­dá­rio, reli­gi­o­so nem a pre­ten­são de falar pelos filhos. O aco­lhi­men­to des­sas famí­li­as é o que nos move.”

Maria Cecí­lia reco­nhe­ce que todo o seu esfor­ço cons­truiu um ambi­en­te de pro­te­ção e aco­lhi­men­to para o filho den­tro de casa, mas que a mili­tân­cia mos­tra todos os dias que o mun­do não é um lugar segu­ro para pes­so­as trans. “O medo é laten­te a qual­quer mãe. E, quan­do você tem um filho trans, esse medo é mui­to mais poten­ci­a­li­za­do. Todos os dias eu temo pela inte­gri­da­de físi­ca do meu filho. Mas eu não pos­so segu­rá-lo numa gai­o­la. Então, o meu papel é o de for­ta­le­ci­men­to, é um tra­ba­lho para que enten­da os seus direi­tos, crie uma rede de apoio que vai estar com ele, que ele sai­ba o que tem que fazer se sofrer pre­con­cei­to, e mos­trar que ele não está sozi­nho. Ele tem a mim, à famí­lia dele, e a orga­ni­za­ções como o Mães pela Diver­si­da­de. Meu tra­ba­lho é falar para o Caio que ele é um meni­no trans, é um meni­no lin­do, é um meni­no que não tem pro­ble­ma nenhum e que ele pre­ci­sa estar aten­to e for­te.”

Solidão materna

A mobi­li­za­ção das Mães pela Diver­si­da­de na Para­da LGBTQIA+ de São Pau­lo foi o que per­mi­tiu que a advo­ga­da Regi­a­ni Abreu as encon­tras­se. Mãe do meni­no trans Luca, que hoje tem 14 anos, ela des­cre­ve que, na épo­ca da tran­si­ção, lida­va com uma inten­sa soli­dão ao não saber como con­du­zir uma situ­a­ção da qual ela acha­va saber tudo, já que esta­va na ter­cei­ra expe­ri­ên­cia como mãe.

Rio de Janeiro (RJ) - A mobilização das Mães pela Diversidade na Parada LGBTQIA+ de São Paulo foi o que permitiu que a advogada Regiani Abreu as encontrasse. Mãe do menino trans Luca, que hoje tem 14 anosFoto: Divulgação
Repro­du­ção: Como advo­ga­da, Regi­a­ni Abreu per­ce­beu que pode­ria aju­dar outras mães de cri­an­ças e ado­les­cen­tes trans — Divul­ga­ção

“Minha moti­va­ção ao me apro­xi­mar não foi polí­ti­ca. Foi uma bus­ca de outras mães. Por­que esse lugar da mãe de trans é mui­to soli­tá­rio. Embo­ra eu tenha tido em toda a tra­je­tó­ria a par­ce­ria do meu com­pa­nhei­ro, pai do meu filho, há uma soli­dão mater­na. Por­que você nun­ca sabe se o que você está fazen­do é cor­re­to. Já há mui­ta cul­pa no exer­cí­cio da mater­ni­da­de. Então, eu pre­ci­sa­va encon­trar outras mães”, con­ta ela, que pas­sou a par­ti­ci­par do gru­po em São Pau­lo, onde mora. “No meu voca­bu­lá­rio de advo­ga­da bran­ca e de clas­se média, nem a pala­vra trans exis­tia. Embo­ra eu fos­se uma pes­soa que tives­se sim­pa­tia pelas cau­sas LGBTQIA+, eu não tinha conhe­ci­men­to. Eu conhe­cia ape­nas as tra­ves­tis que esta­vam tra­ba­lhan­do na rua. Eu não tinha con­ta­to nem com a lin­gua­gem. Era uma dis­tân­cia imen­sa.”

Par­ti­ci­pan­do das dis­cus­sões, ela des­co­briu que sua for­ma­ção como advo­ga­da pode­ria aju­dar mui­tas outras mães. Regi­a­ni aju­dou o gru­po a cri­ar, por exem­plo, um mode­lo de noti­fi­ca­ção de nome soci­al para ser entre­gue em esco­las, para que outras mães sou­bes­sem como exi­gir res­pei­to a iden­ti­da­de de seus filhos.

“Nos­sas famí­li­as são vis­tas como pos­sí­veis de pro­por­ci­o­nar entre­te­ni­men­to. Falar de uma cri­an­ça trans para alguns seto­res da soci­e­da­de cau­sa likes, cau­sa enga­ja­men­to nas redes soci­ais, e as nos­sas famí­li­as infe­liz­men­te são mui­to usa­das por esses gru­pos. Os ata­ques pas­sa­ram a ser mui­to orga­ni­za­dos e foi neces­sá­ria uma ati­vi­da­de polí­ti­ca e de enga­ja­men­to mais orga­ni­za­da. Hoje, o Mães pela Diver­si­da­de atua, por exem­plo, na ela­bo­ra­ção de polí­ti­cas de saú­de. Ele atua como ami­cus curi­ae em ações em que somos ata­ca­dos por esses seto­res”, expli­ca. “E nós, do Mães pela Diver­si­da­de, não somos as pes­so­as, somos as famí­li­as. Então, temos sem­pre que nos colo­car atrás deles. Nun­ca assu­min­do um pro­ta­go­nis­mo que é deles. Eles é que vão dire­ci­o­nar, e nós vamos atu­ar.”

Regi­a­ni con­ta que a defe­sa dos direi­tos trans aca­ba entran­do em casa com a rede de con­ta­tos e as reu­niões do gru­po, e pas­sa para seu filho tam­bém por meio da edu­ca­ção paren­tal. “Ele é uma pes­soa de 14 anos mui­to apro­pri­a­da de si, com mui­ta cer­te­za da impor­tân­cia que ele tem como ser huma­no, pes­soa e titu­lar de direi­to. Isso se refle­te na atu­a­ção dele na vida, por exem­plo, na esco­la”, con­ta ela, que dei­xa cla­ro que isso não sig­ni­fi­ca puxar seu filho para sua mili­tân­cia, e, sim apoiá-lo e ori­en­tá-lo sem­pre que ele soli­ci­tar. “Ago­ra, ele pre­ci­sa cres­cer. Mas toda vez que ele me cha­mar para estar do lado dele, na mili­tân­cia dele, eu vou. Não pos­so tra­zer ele para a minha. Mas ele, por exem­plo, é repre­sen­tan­te de clas­se. Então, eu vejo que está fru­ti­fi­can­do.”

Na mes­ma situ­a­ção em que ela este­ve um dia, outras mães soli­tá­ri­as, assus­ta­das ou inse­gu­ras che­gam aos gru­pos de apoio de que ago­ra Regi­a­ni par­ti­ci­pa. Esses gru­pos são loca­li­za­dos em cada esta­do, e divi­di­dos por letra da sigla LGBTQIA+. Essas mães são aco­lhi­das, pas­sam por uma che­ca­gem de que de fato são mães de filhos LGBTQIA+, e, só então, elas são incluí­das nos gru­pos. A par­tir do aco­lhi­men­to e do for­ta­le­ci­men­to des­sas mães, é cri­a­do um sen­so de cole­ti­vi­da­de, e essas mulhe­res cos­tu­mam se tor­nar ati­vis­tas que se dis­põem a par­ti­ci­par de atos e ações a favor de outras famí­li­as e da cau­sa.

“Essas mães che­gam mui­to dolo­ri­das. Com pro­ble­mas nas suas rela­ções afe­ti­vas, mui­tas vezes, por­que há um emba­te com um com­pa­nhei­ro que não acei­ta. E ela vê a dor do filho e per­ce­be que é uma situ­a­ção insus­ten­tá­vel. Quan­do ela che­ga no Mães, ela já viu que era uma situ­a­ção irre­ver­sí­vel e que a cri­an­ça, jovem ou adul­to está sofren­do demais”, con­ta ela, que lamen­ta que mui­tas mães pre­fe­rem rejei­tar seus filhos do que seguir o cami­nho do enten­di­men­to e do amor.

“Eu vejo com imen­sa tris­te­za e dor, por­que esses pais e essas mães estão esque­cen­do que uma pes­soa não é só LGBT, que um filho é tão pre­ci­o­so, tão raro e é tan­to. Den­tro de um filho tem tan­to, que ser LGBT é só uma coi­si­nha. Eu sin­to mais por esses pais do que por esses filhos, por­que eles estão per­den­do pes­so­as tão raras, tão pre­ci­o­sas, tão gran­des, tão inten­sas, com tan­ta potên­cia. Pes­so­as que, ape­sar dos aban­do­nos, estão tra­ba­lhan­do, cri­an­do, escre­ven­do, fazen­do arte, dan­çan­do. Essas pes­so­as são tão gran­des e têm essa motri­ci­da­de do sen­ti­men­to, de ter visi­ta­do luga­res em que eu nun­ca vou estar, que elas vão encon­trar outras famí­li­as. Elas vão cons­truir laços tão bons, que vão subs­ti­tuir essa famí­lia. E essa famí­lia é que per­deu. Esse pai e essa mãe que per­de­ram. Quan­do eu falo com esses pais, eu sem­pre digo isso. O meu filho joga vôlei, anda de ska­te, gos­ta de jogar vide­o­ga­me, gos­ta de con­ver­sar com os ami­gos, gos­ta de ir à praia. Ele é tan­tas coi­sas e tan­to mais do que só isso que vale estar jun­to, vale estar den­tro. Eu que­ro estar com ele. Eu que­ro ver essa pes­soa acon­te­cer. É uma hon­ra ter o meu filho, os meus três filhos.”

Edi­ção: Juli­a­na Andra­de

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