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Mães se mobilizam por direitos de crianças e adolescentes trans

Repro­dução: © Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Meu papel é o de fortalecimento”, conta Maria Cecília, mãe do Caio


Pub­li­ca­do em 14/05/2023 — 13:25 Por Viní­cius Lis­boa — Repórter da Agên­cia Brasil — Rio de Janeiro

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A comu­nicólo­ga Thamirys Nunes já havia se con­sci­en­ti­za­do de que pre­cisa­va apoiar sua fil­ha trans. Seu com­pan­heiro e pai da cri­ança, tam­bém. Mas se den­tro de casa esta­va garan­ti­do que o cresci­men­to de sua fil­ha con­taria com amor e suporte de que toda cri­ança neces­si­ta, a mãe logo com­preen­deu que, do lado de fora, havia muitas ameaças para que Agatha, hoje com 8 anos, pudesse viv­er sua iden­ti­dade ple­na­mente.

“No Paraná, naque­la época [2019], não podia ter nome social de cri­anças trans no RG, só no de adul­tos. E eu fui faz­er uma viagem de car­ro para São Paulo e tive que voltar de ônibus. No embar­que, o motorista falou que aque­le doc­u­men­to que eu tin­ha não rep­re­sen­ta­va a cri­ança que esta­va comi­go. Eu falei que ela é uma meni­na trans, mas ele insis­tiu que o doc­u­men­to era de um meni­no, e que eu esta­va com uma meni­na. Enfim, foi uma hora e meia de gri­taria na rodoviária, ten­do vários prob­le­mas e difi­cul­dades, até sendo acu­sa­da de ter sequestra­do ela”, lem­bra Thamirys. “Eu come­cei a enten­der que algu­mas coisas são muito especí­fi­cas da pau­ta da cri­ança e do ado­les­cente trans, e que ain­da não tín­hamos nen­hum olhar sobre isso.”

Essa con­sciên­cia foi se soman­do a uma per­cepção de que mes­mo a rede de pro­teção à cri­ança e ao ado­les­cente e as enti­dades de defe­sa dos dire­itos LGBTQIAP+ não estavam preparadas para ori­en­tar mães de cri­anças trans a lidar com difi­cul­dades do dia a dia, que podem ir da matrícu­la à esco­la a um embar­que para via­jar, como no exem­p­lo relata­do. Thamirys con­ta que foi denun­ci­a­da para o con­sel­ho tute­lar por uma unidade bási­ca de saúde, que a acu­sou de induzir a iden­ti­dade de gênero de sua fil­ha. Depois dis­so, cin­co esco­las negaram a matrícu­la dela, porque dis­ser­am que não aceitavam cri­anças trans. Ao ten­tar denun­ciar ofen­sas à polí­cia, a ativista lem­bra ter ouvi­do do del­e­ga­do que se trata­va de um insul­to sim­ples, e que não era trans­fo­bia porque ela não era uma pes­soa trans. Ficou cada vez mais explíc­i­to que aceitar a ausên­cia de dire­itos não era uma opção.

“A gente enten­deu que isso era tão essen­cial para a qual­i­dade de vida da min­ha fil­ha como ter comi­da em casa”, resume ela, que lançou o livro Min­ha Cri­ança Trans?, em 2020. “Mui­ta gente chega­va para mim e per­gun­ta­va: ‘você já ten­tou isso? Você já ten­tou aqui­lo?’ E eu que­ria que as pes­soas soubessem que eu já tin­ha ten­ta­do tudo, e que, de fato, eu tin­ha uma cri­ança trans. Não era mod­in­ha, não era um desen­ho, nem era nen­hu­ma influên­cia exter­na.”

Minha Criança Trans

A pub­li­cação do livro fez com que out­ras mães e pais se aprox­i­massem, crian­do uma comu­nidade que começou ao redor das dis­cussões escritas por ela, mas gan­hou for­ma como espaço de mobi­liza­ção políti­ca até que, no ano pas­sa­do, Thamirys e um grupo de 580 famílias fun­daram a orga­ni­za­ção não gov­er­na­men­tal Min­ha Cri­ança Trans.

“Eu não fiz porque eu sou legal. Eu fiz porque ninguém tin­ha feito. Eu fiz por neces­si­dade. Eu fiz porque eu ten­ho medo que a min­ha fil­ha mor­ra. Eu fiz porque eu não quero mais ser acu­sa­da de seque­stro. Eu fiz porque nen­hu­ma mãe tem que ser denun­ci­a­da ao con­sel­ho tute­lar por isso. Então, eu não fiz porque eu sou uma mãe legal. Eu fiz porque eu sou mãe deses­per­a­da, e é desse lugar que o meu ativis­mo fun­ciona, do deses­pero”, desabafa. “As pes­soas muitas vezes não enten­dem e falam assim: ‘ah, mas a sua fil­ha tem sorte, ela tem pais que a acol­her­am como vocês, que têm uma boa condição de vida. Para quê faz­er essa luta toda?’ E é porque a min­ha fil­ha não pre­cisa de sorte, a min­ha fil­ha pre­cisa de dire­itos, porque a sorte aca­ba.”

Escuta e pesquisa

Para se preparar para a mil­itân­cia, Thamirys, uma mul­her bran­ca, het­eros­sex­u­al, cis­gênero e de classe média, con­ta que pre­cisou ouvir muito, con­hecer out­ras pes­soas trans e estu­dar o tema com pro­fun­di­dade. E a posição de priv­ilé­gio per­mi­tiu que ela se ded­i­cas­se inte­gral­mente a isso. “Min­ha família, até a chega­da da min­ha fil­ha, era uma família extrema­mente cis-hétero. Eu não tin­ha envolvi­men­to com ami­gos LGBTs, e a primeira pes­soa trans que eu con­heci foi a min­ha fil­ha. Então, eu tive tam­bém esse proces­so de descober­ta”, con­ta ela, que se pautou prin­ci­pal­mente pela escu­ta para for­mar sua con­vicção de que tin­ha uma fil­ha trans.

“Eu pro­curei um espe­cial­ista em cri­anças trans e per­gun­tei se a min­ha fil­ha era. Ele respon­deu: ‘não sou eu que vou falar isso, quem vai falar isso é ela. Eu só vou te ensi­nar a escu­tar’. Eu sei que a min­ha fil­ha é uma cri­ança trans porque eu escu­to a min­ha fil­ha, eu obser­vo a min­ha fil­ha e estou aber­ta ao que ela me traz. Quan­do uma cri­ança chega para você, com 3 anos e 11 meses, e fala ‘mamãe, eu pos­so mor­rer hoje para nascer uma meni­na aman­hã?’ Como não escu­tar isso, como você não pres­ta atenção a uma cri­ança que diz ‘mamãe, sabe o que é triste? É triste que Deus não me fez meni­na. A vida seria muito mais legal se eu fos­se uma meni­na’. Então, se você escu­tar isso, você tem que prestar atenção e pen­sar no porquê desse lamen­tar, no porquê desse pesar. Aonde isso quer chegar. Min­ha con­vicção está no bem-estar da min­ha fil­ha. Eu tin­ha um meni­no triste, amua­do, cal­a­do. E eu ten­ho uma meni­na viva, feliz, con­fi­ante. É dela que vem, e enquan­to ela estiv­er bem, enquan­to isso fiz­er sen­ti­do para ela, estarei com ela.”

Famílias de todo o país

Thamirys pre­side a ONG e tem con­ta­to com famílias do Brasil inteiro, com cri­anças e ado­les­centes de 4 a 18 anos, incluin­do pes­soas de difer­entes raças, religiões e pes­soas com defi­ciên­cia. Ela lamen­ta, no entan­to, ain­da não con­seguir chegar a tan­tas famílias em situ­ação de mais vul­ner­a­bil­i­dade econômi­ca e ter reunido mais famílias de classe média e média alta em sua cam­in­ha­da.

“Temos famílias com vul­ner­a­bil­i­dade econômi­ca, mas temos uns 60% que são de classe média e classe média alta. Quer­e­mos virar esse jogo e esta­mos pen­san­do em pro­je­tos e artic­u­lações”, con­ta. “As mães chegam até nós com muitas dúvi­das e inse­gu­ranças, em um proces­so ain­da de mui­ta dor. A grande maio­r­ia tem medo de deixar a tran­sição acon­te­cer e o fil­ho sofr­er vio­lên­cia. E é pre­ciso per­gun­tar: ‘você não acha que ele já não está vul­neráv­el? Ele está vul­neráv­el e den­tro de um armário em que não cabe. É uma dupla vio­lên­cia’. Muitos pais negam a tran­sição por medo, pen­san­do que vão man­ter o fil­ho seguro. Eu não con­de­no e com­preen­do, mas a gente tem que for­t­ale­cer ess­es pais para que eles enten­dam que a vio­lên­cia tem que ficar da por­ta para fora de casa, e negar a iden­ti­dade de um fil­ho tam­bém é uma vio­lên­cia.”

Entre as mães que procu­ram a ONG, rara­mente há casos que chegaram ao extremo de terem expul­sa­do seus fil­hos trans de casa, história de vida relata­da com fre­quên­cia na comu­nidade trans. Por out­ro lado, é fre­quente que jovens trans peçam aju­da sobre como con­tar para as mães que são tran­sex­u­ais. Thamirys afir­ma que cos­tu­ma acon­sel­har a apre­sen­tar a tran­sex­u­al­i­dade aos pais por meio filmes, séries e livros, antes de sair do armário dire­ta­mente. “Eu falo para ser sin­cero, diz­er o que sente. E deixo meu tele­fone e digo que é para a mãe me lig­ar, porque eu estou com ela.”

Falta de normas específicas

Além de dar acol­hi­men­to a essas famílias, a ONG ori­en­ta em questões buro­cráti­cas e reivin­di­ca políti­cas públi­cas para as cri­anças trans, que Thamirys afir­ma serem inex­is­tentes. Ape­sar de o Brasil ter um Estatu­to da Cri­ança e do Ado­les­cente recon­heci­do inter­na­cional­mente, uma rede de pro­teção robus­ta de con­sel­hos tute­lares e um sis­tema de saúde uni­ver­sal, políti­cas especí­fi­cas para cri­anças trans ain­da se fazem necessárias, defende ela, que vê a comu­nidade refém do bom sen­so de agentes públi­cos.

“Infe­liz­mente, a gente enx­er­ga a pau­ta da cri­ança e ado­les­cente trans como uma pau­ta de cos­tumes, e, em pau­ta de cos­tumes, a atu­ação é via pre­con­ceito, via estig­mas reli­giosos, via tabus, via achis­mos. A gente pre­cisa tirar a pau­ta da cri­ança e do ado­les­cente trans dos cos­tumes e migrar para a dig­nidade humana, e, aí sim, ess­es dire­itos todos esta­b­ele­ci­dos e já recon­heci­dos poderão ser apli­ca­dos”, argu­men­ta ela “Quan­tos pedi­atras falaram absur­dos para mães em con­sultórios médi­cos, quan­tas esco­las. A gente teve um caso em que uma juíza, em uma audiên­cia de reti­fi­cação, falou para uma meni­na de 16 anos: ‘eu vou até alter­ar seu nome, mas você nun­ca vai ser mul­her de ver­dade’. Então, quan­do o Esta­do fal­ha no seu bom sen­so, nós pre­cisamos de nor­ma­ti­vas claras, para não ter dúvi­das. E o Esta­do fal­ha em recon­hecer a trans­gener­i­dade em sua inte­gral­i­dade, e a infan­to­ju­ve­nil mais ain­da. Então, em muitas situ­ações, a gente tem que con­tar com o bom sen­so. E, só com o bom sen­so, está difí­cil.”

Thamirys man­tém um per­fil no Insta­gram em que pub­li­ca con­teú­dos sobre o tra­bal­ho da ONG Min­ha Cri­ança Trans.

Mães pela Diversidade

A tra­jetória de Thamirys e a da ONG Min­ha Cri­ança Trans é pare­ci­da com a das Mães pela Diver­si­dade, grupo for­ma­do prin­ci­pal­mente por mul­heres que são mães de pes­soas da sigla LGBTQIA+ e que reivin­dicam os dire­itos de seus fil­hos sem tirar seus pro­tag­o­nis­mos. É o caso da pro­fes­so­ra de edu­cação infan­til Maria Cecília Cas­tro, mãe do Caio, de 13 anos, que sem­pre se inco­mod­ou com roupas fem­i­ni­nas e com o nome com que foi bati­za­do. Pesquisado­ra do tema em sua dis­ser­tação de mestra­do, ela con­ta que estu­dar não facil­i­tou tan­to as coisas para a mater­nidade.

Niterói (RJ), 14/05/2023 - A professora Maria Cecíclia Castro, coordenadora do Mães pela Diversidade no Rio de Janeiro, com o filho Caio, de 13 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Repro­dução: A pro­fes­so­ra Maria Cecí­clia Cas­tro, coor­de­nado­ra do Mães pela Diver­si­dade no Rio de Janeiro, com o fil­ho Caio, de 13 anos — Fer­nan­do Frazão/Agência Brasil

“Ele sem­pre se desen­hou e fez seus autor­re­tratos como um meni­no, e eu con­ver­sa­va pra enten­der e ele dizia sem­pre, des­de muito pequeno, que gostaria de ter sido meni­no, que gos­ta das coisas de meni­nos, que ele era forte. E eu fazia um movi­men­to de mostrar grandes mul­heres, mul­heres fortes, como a própria Rita Lee, a Fri­da, mul­heres de luta, van­guar­da, liber­dade, e ele dizia que não era uma mul­her guer­reira e forte, que era um meni­no”, lem­bra a pro­fes­so­ra, que mora em Niterói, no Rio de Janeiro. “Quan­do ele entra na esco­la, ele não que­ria usar o nome dele de reg­istro. E ele teve uma estraté­gia muito inteligente de pedir para os ami­gos chamarem pelo sobrenome. E chamavam ele de Pereira. Me deu um sus­to como ele se orga­ni­zou para se sen­tir um meni­no trans. E, entre os meni­nos, não tin­ha pre­con­ceito. Os cole­gas sem­pre o acol­her­am de uma for­ma muito afe­tu­osa.”

Durante a pan­demia, ela con­ta que Caio se sen­tiu muito per­tur­ba­do pelo iso­la­men­to, com momen­tos de agres­sivi­dade. Foi então que o fil­ho mostrou a ela uma car­ta que tin­ha escrito para si mes­mo no futuro, em um exer­cí­cio de cáp­su­la do tem­po pro­pos­to pela esco­la.

“Ele abre essa car­ta, e, nela, ele já se chama de Caio. Isso me chocou, porque é uma car­ta lin­da e emo­cio­nante. Eu lem­brei muito da história do João Nery, con­heci­do como o primeiro homem trans a faz­er uma cirur­gia. E, a história dele, ele con­ta em um livro chama­do Uma Viagem Solitária, e eu lem­brei de todo o sofri­men­to do João. E, aí, eu falei pra ele: ‘Fil­ho eu que­ria que você soubesse que a sua viagem não vai ser solitária. Você não vai estar soz­in­ho’”, lem­bra ela, emo­ciona­da.

Luta coletiva

A chega­da ao Mães pela Diver­si­dade, em 2020, se deu na bus­ca por enten­der mel­hor como colo­car na práti­ca da mater­nidade os con­hec­i­men­tos que ela já tin­ha por meio da jor­na­da acadêmi­ca. E tam­bém para esclare­cer dúvi­das sobre a própria tran­sição de gênero e suas questões de saúde e doc­u­men­tação. Na ONG, ela se somou a um cole­ti­vo de cer­ca de 2 mil mães — e alguns pais — que se divi­dem em gru­pos de tra­bal­hos e acol­hi­men­to lig­a­dos às iden­ti­dades de gênero e ori­en­tações sex­u­ais de seus fil­hos e tam­bém às suas espe­cial­iza­ções profis­sion­ais, quan­do podem aju­dar uns aos out­ros.

“Aí, a min­ha vida muda com­ple­ta­mente. E eu apren­do muito com essas mul­heres”, con­ta ela, que a par­tir do grupo encon­tra profis­sion­ais de saúde espe­cial­iza­dos e sen­síveis à trans­gener­i­dade e desco­bre o que pre­cisa faz­er para resolver questões como a mudança do nome do fil­ho no diário esco­lar. “O impor­tante dis­so tudo é como vamos acol­her nos­sos fil­hos, fil­has e fil­h­es. E que as mães come­cem a pen­sar que amor não tem nego­ci­ação.”

A atu­ação cole­ti­va em man­i­fes­tações, audiên­cias públi­cas e movi­men­tos que defen­d­em os dire­itos de seus fil­hos aju­da tam­bém as mães a se for­t­ale­cerem con­tra um dis­cur­so de cul­pa­bi­liza­ção, que ela descreve como fre­quente. “A gente escu­ta muito ‘foi você que criou erra­do. A sua cri­ação deu erra­do. É uma família deses­tru­tu­ra­da. Existe algum prob­le­ma que tem que ser inves­ti­ga­do’. Não se entende que isso é da pes­soa, e se diz que isso é um prob­le­ma que tem que ser cor­rigi­do”, crit­i­ca Maria Cecília. “A gente faz uma luta para que out­ras famílias que têm difi­cul­dade de faz­er esse acol­hi­men­to saibam que está tudo bem, que não é um prob­le­ma, que não é um desajuste, e que o amor é o pilar de todas as relações. É uma orga­ni­za­ção que não tem cun­ho par­tidário, reli­gioso nem a pre­ten­são de falar pelos fil­hos. O acol­hi­men­to dessas famílias é o que nos move.”

Maria Cecília recon­hece que todo o seu esforço con­stru­iu um ambi­ente de pro­teção e acol­hi­men­to para o fil­ho den­tro de casa, mas que a mil­itân­cia mostra todos os dias que o mun­do não é um lugar seguro para pes­soas trans. “O medo é latente a qual­quer mãe. E, quan­do você tem um fil­ho trans, esse medo é muito mais poten­cial­iza­do. Todos os dias eu temo pela inte­gri­dade físi­ca do meu fil­ho. Mas eu não pos­so segurá-lo numa gaio­la. Então, o meu papel é o de for­t­alec­i­men­to, é um tra­bal­ho para que enten­da os seus dire­itos, crie uma rede de apoio que vai estar com ele, que ele sai­ba o que tem que faz­er se sofr­er pre­con­ceito, e mostrar que ele não está soz­in­ho. Ele tem a mim, à família dele, e a orga­ni­za­ções como o Mães pela Diver­si­dade. Meu tra­bal­ho é falar para o Caio que ele é um meni­no trans, é um meni­no lin­do, é um meni­no que não tem prob­le­ma nen­hum e que ele pre­cisa estar aten­to e forte.”

Solidão materna

A mobi­liza­ção das Mães pela Diver­si­dade na Para­da LGBTQIA+ de São Paulo foi o que per­mi­tiu que a advo­ga­da Regiani Abreu as encon­trasse. Mãe do meni­no trans Luca, que hoje tem 14 anos, ela descreve que, na época da tran­sição, lida­va com uma inten­sa solidão ao não saber como con­duzir uma situ­ação da qual ela acha­va saber tudo, já que esta­va na ter­ceira exper­iên­cia como mãe.

Rio de Janeiro (RJ) - A mobilização das Mães pela Diversidade na Parada LGBTQIA+ de São Paulo foi o que permitiu que a advogada Regiani Abreu as encontrasse. Mãe do menino trans Luca, que hoje tem 14 anosFoto: Divulgação
Repro­dução: Como advo­ga­da, Regiani Abreu perce­beu que pode­ria aju­dar out­ras mães de cri­anças e ado­les­centes trans — Divul­gação

“Min­ha moti­vação ao me aprox­i­mar não foi políti­ca. Foi uma bus­ca de out­ras mães. Porque esse lugar da mãe de trans é muito solitário. Emb­o­ra eu ten­ha tido em toda a tra­jetória a parce­ria do meu com­pan­heiro, pai do meu fil­ho, há uma solidão mater­na. Porque você nun­ca sabe se o que você está fazen­do é cor­re­to. Já há mui­ta cul­pa no exer­cí­cio da mater­nidade. Então, eu pre­cisa­va encon­trar out­ras mães”, con­ta ela, que pas­sou a par­tic­i­par do grupo em São Paulo, onde mora. “No meu vocab­ulário de advo­ga­da bran­ca e de classe média, nem a palavra trans exis­tia. Emb­o­ra eu fos­se uma pes­soa que tivesse sim­pa­tia pelas causas LGBTQIA+, eu não tin­ha con­hec­i­men­to. Eu con­hecia ape­nas as trav­es­tis que estavam tra­bal­han­do na rua. Eu não tin­ha con­ta­to nem com a lin­guagem. Era uma dis­tân­cia imen­sa.”

Par­tic­i­pan­do das dis­cussões, ela desco­briu que sua for­mação como advo­ga­da pode­ria aju­dar muitas out­ras mães. Regiani aju­dou o grupo a cri­ar, por exem­p­lo, um mod­e­lo de noti­fi­cação de nome social para ser entregue em esco­las, para que out­ras mães soubessem como exi­gir respeito a iden­ti­dade de seus fil­hos.

“Nos­sas famílias são vis­tas como pos­síveis de pro­por­cionar entreten­i­men­to. Falar de uma cri­ança trans para alguns setores da sociedade causa likes, causa enga­ja­men­to nas redes soci­ais, e as nos­sas famílias infe­liz­mente são muito usadas por ess­es gru­pos. Os ataques pas­saram a ser muito orga­ni­za­dos e foi necessária uma ativi­dade políti­ca e de enga­ja­men­to mais orga­ni­za­da. Hoje, o Mães pela Diver­si­dade atua, por exem­p­lo, na elab­o­ração de políti­cas de saúde. Ele atua como ami­cus curi­ae em ações em que somos ata­ca­dos por ess­es setores”, expli­ca. “E nós, do Mães pela Diver­si­dade, não somos as pes­soas, somos as famílias. Então, temos sem­pre que nos colo­car atrás deles. Nun­ca assu­min­do um pro­tag­o­nis­mo que é deles. Eles é que vão dire­cionar, e nós vamos atu­ar.”

Regiani con­ta que a defe­sa dos dire­itos trans aca­ba entran­do em casa com a rede de con­tatos e as reuniões do grupo, e pas­sa para seu fil­ho tam­bém por meio da edu­cação parental. “Ele é uma pes­soa de 14 anos muito apro­pri­a­da de si, com mui­ta certeza da importân­cia que ele tem como ser humano, pes­soa e tit­u­lar de dire­ito. Isso se reflete na atu­ação dele na vida, por exem­p­lo, na esco­la”, con­ta ela, que deixa claro que isso não sig­nifi­ca puxar seu fil­ho para sua mil­itân­cia, e, sim apoiá-lo e ori­en­tá-lo sem­pre que ele solic­i­tar. “Ago­ra, ele pre­cisa crescer. Mas toda vez que ele me chamar para estar do lado dele, na mil­itân­cia dele, eu vou. Não pos­so traz­er ele para a min­ha. Mas ele, por exem­p­lo, é rep­re­sen­tante de classe. Então, eu vejo que está fru­ti­f­i­can­do.”

Na mes­ma situ­ação em que ela esteve um dia, out­ras mães solitárias, assus­tadas ou inse­guras chegam aos gru­pos de apoio de que ago­ra Regiani par­tic­i­pa. Ess­es gru­pos são local­iza­dos em cada esta­do, e divi­di­dos por letra da sigla LGBTQIA+. Essas mães são acol­hi­das, pas­sam por uma checagem de que de fato são mães de fil­hos LGBTQIA+, e, só então, elas são incluí­das nos gru­pos. A par­tir do acol­hi­men­to e do for­t­alec­i­men­to dessas mães, é cri­a­do um sen­so de cole­tivi­dade, e essas mul­heres cos­tu­mam se tornar ativis­tas que se dis­põem a par­tic­i­par de atos e ações a favor de out­ras famílias e da causa.

“Essas mães chegam muito dolori­das. Com prob­le­mas nas suas relações afe­ti­vas, muitas vezes, porque há um embate com um com­pan­heiro que não acei­ta. E ela vê a dor do fil­ho e percebe que é uma situ­ação insus­ten­táv­el. Quan­do ela chega no Mães, ela já viu que era uma situ­ação irre­ver­sív­el e que a cri­ança, jovem ou adul­to está sofren­do demais”, con­ta ela, que lamen­ta que muitas mães pref­er­em rejeitar seus fil­hos do que seguir o cam­in­ho do entendi­men­to e do amor.

“Eu vejo com imen­sa tris­teza e dor, porque ess­es pais e essas mães estão esque­cen­do que uma pes­soa não é só LGBT, que um fil­ho é tão pre­cioso, tão raro e é tan­to. Den­tro de um fil­ho tem tan­to, que ser LGBT é só uma cois­in­ha. Eu sin­to mais por ess­es pais do que por ess­es fil­hos, porque eles estão per­den­do pes­soas tão raras, tão pre­ciosas, tão grandes, tão inten­sas, com tan­ta potên­cia. Pes­soas que, ape­sar dos aban­donos, estão tra­bal­han­do, crian­do, escreven­do, fazen­do arte, dançan­do. Essas pes­soas são tão grandes e têm essa mot­ri­ci­dade do sen­ti­men­to, de ter vis­i­ta­do lugares em que eu nun­ca vou estar, que elas vão encon­trar out­ras famílias. Elas vão con­stru­ir laços tão bons, que vão sub­sti­tuir essa família. E essa família é que perdeu. Esse pai e essa mãe que perder­am. Quan­do eu falo com ess­es pais, eu sem­pre digo isso. O meu fil­ho joga vôlei, anda de skate, gos­ta de jog­ar videogame, gos­ta de con­ver­sar com os ami­gos, gos­ta de ir à pra­ia. Ele é tan­tas coisas e tan­to mais do que só isso que vale estar jun­to, vale estar den­tro. Eu quero estar com ele. Eu quero ver essa pes­soa acon­te­cer. É uma hon­ra ter o meu fil­ho, os meus três fil­hos.”

Edição: Juliana Andrade

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