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Especialistas contestam polícia sobre efeitos da ADPF das favelas

Repro­du­ção: © Reuters/Jose Lucena/Direitos reser­va­dos

Críticos dizem que faltam dados que provem alegações informadas ao CNJ


Publicado em 13/04/2024 — 08:15 Por Mariana Tokarnia — Repórter da Agência Brasil* — Rio de Janeiro

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As infor­ma­ções apre­sen­ta­das pelas polí­ci­as que atu­am no esta­do do Rio de Janei­ro em rela­tó­rio ela­bo­ra­do por gru­po de tra­ba­lho do Con­se­lho Naci­o­nal de Jus­ti­ça (CNJ) gera­ram indig­na­ção entre pes­qui­sa­do­res e órgãos que atu­am no esta­do. Segun­do tre­chos do rela­tó­rio apre­sen­ta­do a Polí­cia Civil do Rio de Janei­ro atri­bui a expan­são da atu­a­ção de orga­ni­za­ções cri­mi­no­sas, prin­ci­pal­men­te do Coman­do Ver­me­lho, às res­tri­ções impos­tas pelo Supre­mo Tri­bu­nal Fede­ral (STF) às ope­ra­ções poli­ci­ais ain­da duran­te a pan­de­mia de covid-19.

Espe­ci­a­lis­tas argu­men­tam que isso não é ver­da­de, que o avan­ço da cri­mi­na­li­da­de é mais com­ple­xo e envol­ve, por exem­plo, o aumen­to do poder das milí­ci­as, que nun­ca che­ga­ram a ser de fato com­ba­ti­das. Além dis­so, argu­men­tam que fal­tam dados que pro­vem as ale­ga­ções fei­tas no docu­men­to.

O rela­tó­rio foi entre­gue nes­sa quar­ta-fei­ra (10) pelo CNJ ao minis­tro Edson Fachin, do STF, rela­tor da ação de des­cum­pri­men­to de pre­cei­to fun­da­men­tal 635, ape­li­da­da de ADPF das Fave­las, em que foi toma­da a deci­são que res­trin­giu a atu­a­ção poli­ci­al no Rio. O ple­ná­rio votou o tema em 2020, quan­do res­trin­giu as ope­ra­ções poli­ci­ais a “casos excep­ci­o­nais”.

Em ofí­cio, os pró­pri­os con­se­lhei­ros res­pon­sá­veis pela ela­bo­ra­ção do rela­tó­rio fazem a res­sal­va de que as con­si­de­ra­ções rela­ti­vas ao avan­ço do cri­me orga­ni­za­do após a ADPF 635 não fazem par­te das con­clu­sões às quais o gru­po che­gou, elas “refle­tem, tão somen­te, a visão da Secre­ta­ria de Esta­do de Polí­cia Civil do Esta­do do Rio de Janei­ro”.

“A polí­cia não traz dados”, diz o coor­de­na­dor do Núcleo de Defe­sa dos Direi­tos Huma­nos da Defen­so­ria do RJ, André Cas­tro. “Base­a­do em dados, ela tem que dizer, olha, aumen­tou da seguin­te for­ma, fazer as cone­xões, dizer a gen­te infe­re que esse aumen­to se deve ou tem cor­re­la­ção com as medi­das da ADPF, por esses parâ­me­tros, que são veri­fi­cá­veis. Nada dis­so. [Não tem] nada dis­so. Isso é só uma opi­nião, e uma opi­nião com a qual a gen­te não con­cor­da”, acres­cen­ta.

Cas­tro res­sal­ta tam­bém, a impor­tân­cia da ADPF. “O Rio de Janei­ro vinha de um his­tó­ri­co de um cres­ci­men­to mui­to sig­ni­fi­ca­ti­vo no núme­ro de pes­so­as mor­tas por inter­ven­ção de agen­tes de Esta­do. A leta­li­da­de poli­ci­al no Rio de Janei­ro vinha aumen­tan­do em níveis mui­to alar­man­tes ao pon­to de che­gar a pra­ti­ca­men­te um ter­ço das mor­tes vio­len­tas serem come­ti­das por agen­tes de Esta­do. Então, para evi­tar que isso con­ti­nu­as­se esca­lan­do des­sa for­ma, foi pro­pos­ta essa ação para o des­cum­pri­men­to de pre­cei­to fun­da­men­tal, jus­ta­men­te com o obje­ti­vo cen­tral de se ela­bo­rar um pla­no, uma polí­ti­ca públi­ca do Esta­do do Rio de Janei­ro, que tives­se metas, dire­tri­zes, indi­ca­do­res, a fim de imple­men­tar uma polí­ti­ca de segu­ran­ça que seja mais efi­caz no com­ba­te à cri­mi­na­li­da­de, mais efi­caz no com­ba­te às orga­ni­za­ções cri­mi­nais, mas que, ao mes­mo tem­po, pre­ser­vas­se a vida e os direi­tos da popu­la­ção”, expli­ca.

Falta de dados

Segun­do a dire­to­ra de dados e trans­pa­rên­cia do Ins­ti­tu­to Fogo Cru­za­do, Maria Isa­bel Cou­to, não ape­nas as infor­ma­ções apre­sen­ta­das pelas polí­ci­as no rela­tó­rio do CNJ, mas a segu­ran­ça públi­ca no Rio de Janei­ro, no geral, care­ce de dados e infor­ma­ções ofi­ci­ais estru­tu­ra­das. Mui­to da vio­lên­cia no esta­do aca­ba sen­do afe­ri­do por uni­ver­si­da­des e orga­ni­za­ções civis, como o Fogo Cru­za­do.

Pelos dados levan­ta­dos pelas orga­ni­za­ções e gru­pos de estu­do, Cou­to diz que a expan­são dos gru­pos arma­dos se dá de for­ma cons­tan­te antes mes­mo da ADPF e que não é pos­sí­vel esta­be­le­cer essa cor­re­la­ção, ao con­trá­rio do que foi pro­pos­to pela Polí­cia Civil do Rio de Janei­ro.

“Quan­do a ADPF entra em vigên­cia, em 2021, a gen­te obser­va um cres­ci­men­to mai­or das milí­ci­as, e não do Coman­do Ver­me­lho. Então, esse é o pri­mei­ro ele­men­to que a gen­te men­ci­o­na para dizer que a gen­te não enxer­ga essa cor­re­la­ção”, diz.

De acor­do com pes­qui­sa iné­di­ta sobre a expan­são das orga­ni­za­ções cri­mi­no­sas no Rio de Janei­ro rea­li­za­do por diver­sas orga­ni­za­ções, entre elas o Fogo Cru­za­do e o Gru­po de Estu­dos dos Novos Ile­ga­lis­mos (Geni), da Uni­ver­si­da­de Fede­ral Flu­mi­nen­se (UFF), em 2019, antes da ADPF, as milí­ci­as já con­tro­lam 25,5% dos bair­ros do Rio, tota­li­zan­do 57,5% da super­fí­cie ter­ri­to­ri­al da cida­de, enquan­to o Coman­do Ver­me­lho, ocu­pa­va 24,2% dos bair­ros, e outras fac­ções, ter­ri­tó­ri­os ain­da meno­res.

Além dis­so, os dados mos­tram que a ADPF não foi res­pei­ta­da. “A par­tir de janei­ro de 2021, a gen­te ini­cia um perío­do que a gen­te cha­ma de afron­ta. É como se a ADPF 635 esti­ves­se sen­do ter­mi­nan­te­men­te des­res­pei­ta­da. E entre janei­ro e abril de 2021, na épo­ca que a gen­te publi­ca esse rela­tó­rio, a gen­te vê que a média men­sal de ope­ra­ções poli­ci­ais e da leta­li­da­de poli­ci­al, ela che­ga a supe­rar o que a gen­te tinha antes da ADPF”, diz, Cou­to. O docu­men­to a que se refe­re é o Rela­tó­rio Anu­al 2021 do Ins­ti­tu­to Fogo Cru­za­do.

Os dados mos­tram que em 2021, hou­ve 4.653 tiro­tei­os na Região Metro­po­li­ta­na do Rio de Janei­ro, com uma média de 13 por dia. As ações poli­ci­ais resul­ta­ram em 2.098 pes­so­as bale­a­das, sen­do 1.084 mor­tas e 1.014 feri­das, que repre­sen­tam cin­co bale­a­dos a cada 24 horas. No mes­mo ano, 17 cri­an­ças e 43 ado­les­cen­tes foram bale­a­dos na Região Metro­po­li­ta­na.

Ela defen­de que haja de fato um pla­no de segu­ran­ça públi­ca no esta­do, com obje­ti­vos, metas e meto­do­lo­gia de acom­pa­nha­men­to cla­ros e trans­pa­ren­tes e que esse pla­no inclua medi­das de redu­ção da leta­li­da­de poli­ci­al.  “No caso do Rio de Janei­ro, a gen­te só tem infor­ma­ções sobre ações e ope­ra­ções poli­ci­ais que ter­mi­nam um con­fron­to arma­do, moni­to­ra­da pela soci­e­da­de civil. Não fos­se o Fogo Cru­za­do come­çar a levan­tar esse dado em 2016, a gen­te pos­si­vel­men­te até hoje não teria aces­so a esse tipo de infor­ma­ção. E aí a gen­te tem uma popu­la­ção que vive, infe­liz­men­te, sub­me­ti­da a um medo extre­mo e a igno­rân­cia sobre quais são os ele­men­tos que levam a esse medo”, diz.

Avanço das milícias

Ao con­trá­rio do trá­fi­co, que foi res­sal­ta­do pela polí­cia, os espe­ci­a­lis­tas cha­mam aten­ção para o cres­ci­men­to das milí­ci­as, como apon­ta­do pelos dados do Fogo Cru­za­do e outras orga­ni­za­ções.

“A estru­tu­ra mili­ci­a­na não com­ba­ti­da é a estru­tu­ra do gru­po arma­do que mais se expan­diu no Rio de Janei­ro nos últi­mos anos. Tiran­do esse cres­ci­men­to recen­te do Coman­do Ver­me­lho, que é na ver­da­de uma recu­pe­ra­ção de áre­as per­di­das, a milí­cia é o gru­po mais está­vel, mais sóli­do, que não sofre com ope­ra­ções poli­ci­ais, não é com­ba­ti­do. Por quê? Por­que tem toda uma inter­fa­ce da estru­tu­ra mili­ci­a­na com a estru­tu­ra de segu­ran­ça públi­ca. E mais do que isso, milí­cia é uma estru­tu­ra econô­mi­ca e polí­ti­ca”, diz o pro­fes­sor da Uni­ver­si­da­de Fede­ral Rural do Rio de Janei­ro José Clau­dio Alves.

No ano pas­sa­do, 35 ôni­bus incen­di­a­dos evi­den­ci­a­ram a pre­sen­ça das milí­ci­as no Rio de Janei­ro. O assas­si­na­to da vere­a­do­ra Mari­el­le Fran­co tam­bém res­sal­tou a influên­cia das milí­ci­as.

“A milí­cia sem­pre foi pro­te­gi­da pela estru­tu­ra de segu­ran­ça públi­ca. Nun­ca hou­ve com­ba­te real à estru­tu­ra mili­ci­a­na. Ela sem­pre cres­ceu, ela sem­pre se expan­diu, ela sem­pre avan­çou. Isso, his­to­ri­ca­men­te, se deu e se dá. A estru­tu­ra de segu­ran­ça públi­ca, ela pro­te­geu, sem­pre pro­te­geu, uma fac­ção, um gru­po arma­do, um gru­po arma­do espe­cí­fi­co, que é o gru­po que tem mais ali­an­ça, que tem mais rela­ção com a estru­tu­ra poli­ci­al, onde os seus mem­bros estão dire­ta­men­te envol­vi­dos”, diz o pro­fes­sor.

Perícias judiciais criminais

De acor­do com Cas­tro, o rela­tó­rio apre­sen­ta­do pelo CNJ con­tém con­clu­sões impor­tan­tes que pre­ci­sam ser obser­va­das. Entre elas, está a indi­ca­ção de que há “gra­ves pro­ble­mas estru­tu­rais encon­tra­dos no con­tex­to das perí­ci­as cri­mi­nais rea­li­za­das no esta­do do Rio de Janei­ro”, como diz o rela­tó­rio, que ain­da obser­va: “a polí­cia téc­ni­co-cien­tí­fi­ca do esta­do do Rio de Janei­ro está alo­ca­da ins­ti­tu­ci­o­nal­men­te enquan­to Supe­rin­ten­dên­cia da Secre­ta­ria da Polí­cia Civil. Eis o pri­mei­ro pro­ble­ma a ser equa­ci­o­na­do: é fun­da­men­tal con­fe­rir auto­no­mia à ati­vi­da­de peri­ci­al, tra­tan­do-se de dis­cus­são que se arras­ta há anos no esta­do”.

Cas­tro des­ta­ca: “O esta­do do Rio de Janei­ro é um dos pou­cos esta­dos da fede­ra­ção onde a perí­cia téc­ni­ca é um depar­ta­men­to den­tro da Secre­ta­ria de Polí­cia. Nos demais esta­dos, de modo geral, não é. Eles têm uma auto­no­mia em rela­ção à polí­cia. E por que isso? Por­que exa­ta­men­te em mui­tos casos, o que está sen­do exa­mi­na­do envol­ve a pró­pria for­ça poli­ci­al. Então isso é um parâ­me­tro inter­na­ci­o­nal tam­bém para você garan­tir que você tem o órgão encar­re­ga­do da ati­vi­da­de poli­ci­al pro­pri­a­men­te e o outro órgão que faz a perí­cia téc­ni­ca”, diz o coor­de­na­dor do Núcleo de Defe­sa dos Direi­tos Huma­nos da Defen­so­ria do RJ.

O rela­tó­rio apon­ta ain­da, entre outras con­clu­sões, a neces­si­da­de de coman­do judi­ci­al que impo­nha a obri­ga­to­ri­e­da­de de dis­po­ni­bi­li­za­ção ao Minis­té­rio Públi­co pelas Polí­ci­as de infor­ma­ções para que seja rea­li­za­do efe­ti­va­men­te um con­tro­le exter­no, ou seja, as for­ças poli­ci­ais deve­rão apor­tar seus dados em canal minis­te­ri­al sis­te­ma­ti­za­do, com dados estru­tu­ra­dos e con­fiá­veis, que pos­sam ser acom­pa­nha­dos em tem­po real.

*Cola­bo­rou Tâma­ra Frei­re, da Radi­o­a­gên­cia  

Edi­ção: Ali­ne Leal

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