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Modo não indígena de pensar futuro é alienante, diz Daniel Munduruku

Repro­du­ção: © Dani­el Munduruku/Divulgação

“É uma visão que educa as pessoas para o egoísmo”, avalia o escritor


Publicado em 17/04/2024 — 07:30 Por Alex Rodrigues — Repórter da Agência Brasil — Brasília

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Dani­el Mun­du­ru­ku não se ilu­de. Seja per­cor­ren­do o mun­do para falar sobre lite­ra­tu­ra e divul­gar os mais de 60 livros que escre­veu, seja atu­an­do em uma nove­la da emis­so­ra de mai­or audi­ên­cia do país, está cons­ci­en­te de que o livre aces­so a espa­ços até há pou­co ina­ces­sí­veis para indí­ge­nas como ele pode ser usa­do con­tra a luta secu­lar de seus paren­tes.

“O fato de estar­mos na lite­ra­tu­ra, na aca­de­mia, na polí­ti­ca, em vári­os luga­res, pode gerar a autoi­lu­são de achar­mos que esta­mos fazen­do uma gran­de coi­sa quan­do, na ver­da­de, só esta­mos aju­dan­do a, de cer­ta for­ma, ali­men­tar o sis­te­ma econô­mi­co que rejei­ta­mos”, pon­de­ra Dani­el.

Con­vi­da­do a ima­gi­nar o futu­ro dos povos ori­gi­ná­ri­os para uma série de entre­vis­tas com inte­lec­tu­ais, lide­ran­ças e ati­vis­tas indí­ge­nas que a Agên­cia Bra­sil publi­ca esta sema­na, por oca­sião do Dia dos Povos Indí­ge­nas, na sex­ta-fei­ra (19), Dani­el cri­ti­ca a fixa­ção da soci­e­da­de não indí­ge­na com o futu­ro.

“Esse olhar para o futu­ro ali­e­na as pes­so­as para a neces­si­da­de mais ime­di­a­ta de cons­truir­mos nos­sa exis­tên­cia no pre­sen­te. É uma visão que edu­ca as pes­so­as para o egoís­mo”, argu­men­ta, afir­man­do que, tra­di­ci­o­nal­men­te, os povos indí­ge­nas con­ce­bem o tem­po de for­ma dife­ren­te, com foco no pas­sa­do e no pre­sen­te, onde bus­cam res­pos­tas para seguir resis­tin­do à des­trui­ção de seus ter­ri­tó­ri­os e de seus modos de ser.

“O tem­po é cir­cu­lar, como a natu­re­za. Ele ali­men­ta a si mes­mo, des­do­bran­do-se e se pro­je­tan­do adi­an­te. A his­tó­ria se repe­te. Nes­te momen­to, está se repro­du­zin­do de for­ma mui­to dura, mui­to cru­el, e não só para os povos indí­ge­nas”, acres­cen­ta.

Nas­ci­do em Belém (PA), em 1964, Dani­el é for­ma­do em Filo­so­fia e dou­tor em Edu­ca­ção, pela Uni­ver­si­da­de de São Pau­lo (USP). É con­si­de­ra­do um dos gran­des divul­ga­do­res da cul­tu­ra indí­ge­na. A mai­or par­te de sua exten­sa obra é des­ti­na­da a cri­an­ças e ado­les­cen­tes. Em 2017, ganhou um Jabu­ti, o mais tra­di­ci­o­nal prê­mio lite­rá­rio do país, na cate­go­ria Juve­nil, por seu livro Vozes Ances­trais — em 2004, já tinha rece­bi­do men­ção hon­ro­sa na mes­ma pre­mi­a­ção, por Coi­sas de Índio — Ver­são Infan­til. “Minha lite­ra­tu­ra é uma espé­cie de cho­ro para sen­si­bi­li­zar adul­tos”.

Leia, a seguir, tre­chos da entre­vis­ta que Dani­el Mun­du­ru­ku con­ce­deu um dia após retor­nar de via­gem à Itá­lia.

Agên­cia Bra­sil: Em suas pales­tras, entre­vis­tas e livros, o senhor des­ta­ca o fato de que os mun­du­ru­ku e outras etni­as indí­ge­nas con­ce­bem o tem­po de outra manei­ra, pen­san­do o futu­ro de for­ma diver­sa daque­la com a qual o pen­sa­men­to oci­den­tal não indí­ge­na está habi­tu­a­do. O senhor pode comen­tar um pou­co mais sobre isso?
Dani­el Mun­du­ru­ku: Acho que pos­so gene­ra­li­zar sem medo de ser injus­to. Em geral, os povos indí­ge­nas têm uma con­cep­ção de que o tem­po é cir­cu­lar, como os ciclos da natu­re­za. Eles não veem o tem­po como algo line­ar, mas sim como algo que ali­men­ta a si mes­mo, des­do­bran­do-se e se pro­je­tan­do adi­an­te. O pas­sa­do diz res­pei­to a quem somos, de onde vie­mos, e o pre­sen­te é onde viven­ci­a­mos o resul­ta­do dis­so tudo. Com isto, esses povos cons­truí­ram uma visão de mun­do que, ori­gi­nal­men­te, não é base­a­da no tem­po do reló­gio, da pro­du­ção, do acú­mu­lo de rique­zas mate­ri­ais. Essa é a visão resul­tan­te da con­cep­ção line­ar de tem­po, que tem a ver com a cer­te­za de que exis­te algo além do pre­sen­te, ou seja, o futu­ro. Por essa óti­ca line­ar, no futu­ro, as pes­so­as serão mais feli­zes. Assim nas­cem as gran­des his­tó­ri­as oci­den­tais sobre uma bus­ca por algo mui­to impor­tan­te: do san­to gra­al a uma vida após esta vida. Esse olhar para o futu­ro ali­e­na as pes­so­as para a neces­si­da­de mais ime­di­a­ta de cons­truir­mos nos­sa pró­pria exis­tên­cia no pre­sen­te. É uma visão que edu­ca as pes­so­as para o egoís­mo, para a dis­pu­ta, para a con­quis­ta e a colo­ni­za­ção do outro. Toda a peda­go­gia oci­den­tal está fun­da­men­ta­da na céle­bre per­gun­ta “o que você vai ser quan­do cres­cer?’. Nas comu­ni­da­des indí­ge­nas tra­di­ci­o­nais, não se per­gun­ta a uma cri­an­ça o que ela vai ser quan­do cres­cer. Exis­te a com­pre­en­são de que ela já é aqui­lo que só lhe é pos­sí­vel ser no ago­ra. Cabe à comu­ni­da­de e aos adul­tos ofe­re­ce­rem as con­di­ções para que ela seja ple­na­men­te cri­an­ça, cres­ça, se tor­ne um jovem equi­li­bra­do e, por fim, um velho cons­ci­en­te do seu papel no mun­do. Isso é ligar seu ser pre­sen­te ao futu­ro, esta­be­le­cen­do uma rela­ção de cir­cu­la­ri­da­de e edu­can­do para o cole­ti­vo.

Agên­cia Bra­sil: Mas, hoje, os pró­pri­os indí­ge­nas deman­dam que pen­se­mos no futu­ro, rei­vin­di­can­do polí­ti­cas públi­cas que, neces­sa­ri­a­men­te, pre­ci­sam ter metas e ava­li­a­ção de resul­ta­dos. Não é impor­tan­te pen­sar o futu­ro como for­ma de res­pon­der aos pro­ble­mas pre­sen­tes?
Dani­el Mun­du­ru­ku: O que os indí­ge­nas que­rem é viver uma vida lon­ga. Para isso, pre­ci­sa­mos das con­di­ções ade­qua­das. E uma con­di­ção é não viver em cons­tan­te dis­pu­ta uns com os outros. Ao dis­pu­tar­mos, a gen­te des­trói, domi­na, escra­vi­za, mata. E nem todos con­se­guem ser feli­zes des­ta manei­ra. Daí a crí­ti­ca a esse modo de ver o futu­ro, que resul­ta, como dis­se, em um olhar que ali­e­na e edu­ca para o egoís­mo. Para resol­ver os pro­ble­mas pre­sen­tes dos povos indí­ge­nas – pro­ble­mas que se des­do­bram a par­tir do pas­sa­do –, teri­am que demar­car todos os ter­ri­tó­ri­os e dar aos indí­ge­nas auto­no­mia para deci­dir o que fazer com as ter­ras homo­lo­ga­das. Cabe­ria aos indí­ge­nas resol­ver o melhor cami­nho a seguir. Repi­to: não se tra­ta ape­nas de modos de vida. Tra­ta-se de como a eco­no­mia gover­na o mun­do. Embo­ra exis­ta o con­cei­to de eco­no­mia cir­cu­lar, a eco­no­mia que efe­ti­va­men­te gover­na o mun­do é line­ar. Seria neces­sá­rio e urgen­te dar aos indí­ge­nas a opor­tu­ni­da­de de deci­di­rem como fazer a jun­ção entre a eco­no­mia cir­cu­lar indí­ge­na e a eco­no­mia line­ar.

Agên­cia Bra­sil: Fei­tas essas con­si­de­ra­ções, como o senhor ima­gi­na o futu­ro dos povos indí­ge­nas? O senhor con­cor­da com a tese de que o futu­ro é ances­tral ou não have­rá futu­ro?
Dani­el Mun­du­ru­ku: Gos­to da ideia de o futu­ro ser ances­tral. Seria a com­pro­va­ção de que o que está por acon­te­cer já acon­te­ceu e de que o tem­po é cir­cu­lar. De que a his­tó­ria se repe­te e que, nes­te momen­to, ela está repro­du­zin­do um momen­to mui­to duro, mui­to cru­el, não só para os povos indí­ge­nas.

Agên­cia Bra­sil: Duro e con­tra­di­tó­rio, não? Ao mes­mo tem­po em que os ter­ri­tó­ri­os indí­ge­nas são alvo da cobi­ça de garim­pei­ros, madei­rei­ros e da expan­são das fron­tei­ras agrí­co­las e que tes­te­mu­nha­mos cri­ses huma­ni­tá­ri­as como as que atin­gem os yano­ma­mi, na Amazô­nia, e os gua­ra­ni e kai­owá, em Mato Gros­so do Sul, a popu­la­ção indí­ge­na segue cres­cen­do e há cada vez mais indí­ge­nas ocu­pan­do espa­ços até há pou­co ina­ces­sí­veis.
Dani­el Mun­du­ru­ku: Mas a con­tra­di­ção não é nos­sa. É do sis­te­ma que olha e sem­pre olhou para os povos indí­ge­nas como um pro­ble­ma. Há milha­res de anos, nós, indí­ge­nas, temos cons­truí­do res­pos­tas para par­te dos gra­ves pro­ble­mas que a huma­ni­da­de está enfren­tan­do. Exis­tem, no Bra­sil, 300 povos indí­ge­nas lutan­do bra­va­men­te para se man­te­rem vivos. O que envol­ve tam­bém a luta pela demar­ca­ção de ter­ri­tó­ri­os. Óbvio que não há solu­ções fáceis.

Agên­cia Bra­sil: O senhor aca­ba de retor­nar da Itá­lia, onde par­ti­ci­pou da Fei­ra do Livro Infan­til e Juve­nil de Bolo­nha. A minis­tra dos Povos Indí­ge­nas, Sonia Gua­ja­ja­ra, aca­ba de retor­nar dos Esta­dos Uni­dos, onde, entre outras coi­sas, par­ti­ci­pou de um even­to em Har­vard. O Ail­ton Kre­nak tor­nou-se, na sema­na pas­sa­da, o pri­mei­ro indí­ge­na a ocu­par uma cadei­ra na Aca­de­mia Bra­si­lei­ra de Letras. Pela pri­mei­ra vez, a Funai é coman­da­da por uma indí­ge­na, a advo­ga­da Joê­nia Wapi­cha­na. Há cada vez mais escri­to­res indí­ge­nas, alguns com rela­ti­vo suces­so comer­ci­al. A soci­e­da­de está ansi­o­sa por conhe­cer o que o senhor aca­ba de cha­mar de “res­pos­tas indí­ge­nas para par­te dos gra­ves pro­ble­mas que a huma­ni­da­de enfren­ta”?
Dani­el Mun­du­ru­ku: Eu diria que estão ten­tan­do impin­gir na gen­te a obri­ga­ção de dar res­pos­tas, de dar solu­ção à cri­se que o pró­prio homem bran­co gerou. Cla­ro que os indí­ge­nas estão bus­can­do se fazer cada vez mais pre­sen­tes, pois não há outro cami­nho. Ou a gen­te se apre­sen­ta como par­te des­sa soci­e­da­de à bei­ra da des­trui­ção e da lou­cu­ra, ou a gen­te é engo­li­do por ela sem ter nem sequer direi­to a falar. A ques­tão é que, às vezes, o que pode pare­cer uma gran­de coi­sa pode ser um engo­do. O fato de estar­mos na lite­ra­tu­ra, na aca­de­mia, na polí­ti­ca, em vári­os luga­res pode gerar a autoi­lu­são de achar­mos que esta­mos fazen­do uma gran­de coi­sa quan­do, na ver­da­de, só esta­mos aju­dan­do a, de cer­ta for­ma, ali­men­tar o sis­te­ma econô­mi­co que rejei­ta­mos.

Agên­cia Bra­sil: O senhor aca­bou não com­ple­tan­do a res­pos­ta sobre quais são, a seu ver, as pos­si­bi­li­da­des de futu­ro para os povos indí­ge­nas?
Dani­el Mun­du­ru­ku: Como eu dis­se, as solu­ções para os pro­ble­mas não são fáceis. Exis­te futu­ro para os povos indí­ge­nas nes­te sis­te­ma em que vive­mos? Um futu­ro em que pos­sa­mos man­ter par­te de nos­sas tra­di­ções, incluin­do a opção de seguir viven­do na flo­res­ta se assim qui­ser­mos? Não sei. Temo que isso aca­be logo. Por­que o sis­te­ma, gulo­so como só ele, vai que­rer devo­rar tudo, como vem acon­te­cen­do há sécu­los. Há 524 anos os indí­ge­nas tra­vam uma guer­ra con­tra esse sis­te­ma, pre­ser­van­do seus ter­ri­tó­ri­os. Não sou um bom pro­fe­ta, mas acho que o que se dese­nha para nós é, pou­co a pou­co, irmos cada vez mais para os cen­tros urba­nos sob ris­co de mor­rer­mos em con­fron­tos.

Agên­cia Bra­sil: O senhor, por­tan­to, é pes­si­mis­ta quan­to ao futu­ro dos povos indí­ge­nas?
Dani­el Mun­du­ru­ku: Não digo pes­si­mis­ta. É que a espe­ran­ça é uma fic­ção. E uma fic­ção é uma for­ma de embar­car­mos na ideia de futu­ro sobre a qual já fala­mos. De bus­car, no futu­ro, res­pos­tas para os pro­ble­mas pre­sen­tes, quan­do a rea­li­da­de é mui­to mais cru­el e o ini­mi­go, mui­to mais for­te do que a gen­te ima­gi­na. Às vezes, o ini­mi­go vai trans­for­man­do nos­sa espe­ran­ça em um pro­du­to com o qual aca­ba nos ilu­din­do. Se admi­tir isso é ser pes­si­mis­ta, que seja, tudo bem.

Agên­cia Bra­sil: Por outro lado, boa par­te de sua obra lite­rá­ria é des­ti­na­da a cri­an­ças e ado­les­cen­tes, o que com­por­ta boa dose de oti­mis­mo.
Dani­el Mun­du­ru­ku: Sim, há algo de uto­pia nis­so. Uso minha escri­ta para cri­an­ças como for­ma de atin­gir os adul­tos. Ima­gi­no que um adul­to vai ler um livro antes de ofe­re­cê-lo a um filho e pro­cu­ro atin­gir o adul­to por meio de temas uni­ver­sais. Às vezes, a gen­te pre­ci­sa usar o cho­ro das cri­an­ças para sen­si­bi­li­zar os adul­tos, que são, de fato, quem pre­ci­sa de remen­do. Minha lite­ra­tu­ra é isso: uma espé­cie de cho­ro para sen­si­bi­li­zar adul­tos.

*A pri­mei­ra entre­vis­ta­da para esta série espe­ci­al que a Agên­cia Bra­sil pro­du­ziu para o Dia dos Povos Indí­ge­nas foi a demó­gra­fa Rosa Col­man, pri­mei­ra e, pos­si­vel­men­te, úni­ca espe­ci­a­lis­ta em estu­dos popu­la­ci­o­nais a se auto­de­cla­rar indí­ge­na no país. Nos pró­xi­mos dias serão publi­ca­das as entre­vis­tas com a escri­to­ra Eli­a­ne Poti­gua­ra e com a minis­tra Sonia Gua­ja­ja­ra.

Edi­ção: Juli­a­na Andra­de

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